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A Tarde Memória

Por Priscila Dórea*

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 18 de outubro de 2025 às 6:02 h | Autor:

De filas zeradas a esperanto: o que os baianos pediram na Constituição de 1988

Constituição Cidadã: relembre como o povo ajudou a escrever a lei mais importante do país

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Congresso Nacional ficou lotado na cerimônia de promulgação da Constituição
Congresso Nacional ficou lotado na cerimônia de promulgação da Constituição -

A convocação da Assembleia Nacional Constituinte se transformou em uma das representações da redemocratização do Brasil após 21 anos de ditadura militar, encerrada em 1985. Com o objetivo de elaborar uma nova Constituição que refletisse os anseios da sociedade, a população do país foi convidada a enviar cartas com sugestões, demandas e desejos para os deputados que redigiriam o novo ordenamento legislativo e de justiça do país. Ao todo, 72.719 das chamadas Cartas da Constituinte foram remetidas dos quatro cantos do Brasil, incluindo de Salvador e cidades do interior da Bahia.

As propostas das pessoas comuns e de movimentos sociais que se articularam para ter representatividade na Constituinte, ajudaram a criar a Constituição Brasileira de 1988, apelidada de Constituição Cidadã, em substituição à carta adotada pelos militares em 1967. A ideia de receber correspondência da população partiu do servidor do Senado William Dupin, então chefe da Coordenação de Projetos Especiais da Secretaria de Tecnologia da Informação do Senado Federal (Prodasen), o órgão responsável pela tecnologia da informação do Senado Federal.

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Na Bahia, ainda em 1985, a Assembleia Legislativa convocou os veículos de comunicação baianos para ajudar a Casa a deflagrar a campanha em prol da Constituinte no estado. "Representando o A TARDE e a Associação Bahiana de Imprensa, da qual é vice-presidente, o jornalista Samuel Celestino destacou o papel da imprensa, cuja missão é refletir a realidade. Disse da importância da mobilização pela Assembleia Nacional Constituinte, ‘pois o novo ordenamento jurídico que se quer no País para 1986 não é apenas uma Constituição de final de século, mas uma Carta Magna de forma permanente e duradoura", explicava reportagem em A TARDE, em 11 de junho daquele ano.

As campanhas se intensificaram em todo o país e, no dia 1º de fevereiro de 1987, a Assembleia Nacional Constituinte foi instalada. Composta por 559 parlamentares eleitos pelo voto direto, eles tiveram a missão de elaborar uma nova Constituição que refletisse valores democráticos, direitos sociais e aspirações da sociedade brasileira. Presidida por Ulysses Guimarães, a Constituinte funcionou no Congresso Nacional, em Brasília, e teve como base legal a Emenda Constitucional nº 26, de 1985, que autorizou sua criação.

"Brasília vive, desde ontem, o clima de festa que culminará com o momento histórico da instalação da Assembleia Nacional Constituinte, às 16 horas de hoje, no Congresso Nacional. Parlamentares, convidados e curiosos passaram todo o dia de ontem circulando pelas dependências das duas casas do Poder Legislativo, que estavam recebendo os últimos retoques para os atos de hoje. (...) A movimentação no Congresso, contudo, começará bem mais cedo, pois, já pela manhã estarão tomando posse os 487 deputados (9 horas) e 72 senadores (10 horas)", informava A TARDE no dia 1º de fevereiro de 1987.

Os parlamentares eleitos deveriam redigir a nova Carta Magna e todo o processo foi marcado por intensos debates, participação popular e embates ideológicos. Historiador e professor do departamento de História e da pós-graduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Carlos Zacarias explica que a redação da Constituição de 1988 se tornou um marco da redemocratização e da reorganização de movimentos sociais. Ainda se reestruturando, em comparação aos dias de hoje, os movimentos negro, feminista e gay (como o movimento LGBTQIA+ era conhecido na época) fizeram propostas e pressionavam os parlamentares na feitura da constituição.

"Há muitos deputados progressistas que são vinculados ou oriundos desses segmentos e cumpriram um papel fundamental na criação da Constituição. A dimensão da presença popular na Constituição de 1988 é enorme e por isso ela, ainda hoje, desperta tanto a ira de setores mais retrógrados da sociedade, que atuaram em 1986 na Constituinte. Na época, por exemplo, o Centrão foi um dos principais obstáculos dos movimentos sociais e dos setores populares que buscavam transpor as questões relacionadas ao conservadorismo que vinham da Constituição de 1967", explica o historiador.

Professor Carlos Zacarias, da pós-graduação em História da UFBA e coordenador do grupo de pesquisa História Política dos Partidos e Movimentos Contemporâneos de Esquerda e Direita - Politiza
Professor Carlos Zacarias, da pós-graduação em História da UFBA e coordenador do grupo de pesquisa História Política dos Partidos e Movimentos Contemporâneos de Esquerda e Direita - Politiza | Foto: Tallita Lopes | Ag. A TARDE

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Desejo popular

Fac-símile do modelo de Carta Cidadã que o Congresso pediu aos brasileiros para enviarem aos constituintes com sugestões para a nova Constituição
Fac-símile do modelo de Carta Cidadã que o Congresso pediu aos brasileiros para enviarem aos constituintes com sugestões para a nova Constituição | Foto: Reprodução / Senado Federal

Um dos momentos emblemáticos do período foi a ideia de pedir sugestões da população, com as Cartas da Constituinte. Nem os deputados e senadores que atuavam na linha de frente da redemocratização imaginaram que a convocação popular renderia as milhares de correspondências enviadas por cidadãos, sindicatos, movimentos sociais e instituições religiosas. Todo mundo tinha alguma coisa para pedir, sugerir ou mesmo apenas desejar “boa sorte” a quem tinha como tarefa criar a nova constituição.

O Senado elaborou um formulário onde a pessoa que desejava contribuir com sugestões preenchia informações básicas como nome, endereço, sexo, faixa etária, renda, escolaridade, estado civil e área de trabalho. Depois de preencher a ficha, havia 23 linhas para o missivista escrever seus desejos para a nova constituição. Havia espaço, inclusive, para nomear o parlamentar a qual a sugestão estava sendo dirigida, caso a pessoa desejasse cobrar mais ação ao representante do seu estado natal. O mais citado, até por presidir o processo todo foi o parlamentar Ulysses Guimarães. Foram 3.262 pessoas que direcionaram suas mensagens diretamente para ele.

Cerca de cinco milhões de formulários foram distribuídos pelos municípios do país, de maneira proporcional à população de cada cidade. Em uma época sem internet, só havia formulário impresso e eles ficaram disponíveis nas agências dos Correios e em pontos de coleta em prefeituras e assembleias legislativas. Partidos políticos também puderam entregar formulários diretamente a seus filiados. Depois de quase um ano, chegaram ao Senado mais de 72 mil formulários preenchidos, que foram classificados em 24 áreas temáticas pelo Prodasen, que digitou tudo para que fossem inseridos no recém-criado Sistema de Apoio Informático à Constituinte (Saic).

Na atualidade, para preservar a memória desse período, o Senado criou a página Constituição dos Sonhos, que pode ser acessada no site oficial do Senado (www12.senado.leg.br/hpsenado). No endereço, uma ferramenta de filtragem permite acessar todas as cartas digitalizadas por Estado e Cidade. O Senado optou por manter a grafia das cartas da forma que a pessoa que as escreveu enviou. Nessa reportagem, também seguimos a mesma regra ao buscar exemplos de cartas baianas.

Em uma dessas correspondências, de Curaçá (BA), enviada por um missivista com idade entre 15 e 19 anos, o pedido era por melhorias na educação: "Para a nova Constituição imploro mais do que já foi feito pela educação. Pesso que façam o impossível pela educação. Aqui na Bahia precisa demais de escolas e colégios. Cidades em que se esperdiça cultura de muita gente por falta de colégios. Os ex-futuros homens do amanhã. A Bahia, principalmente no interior precisa de escolas agrotécnicas, de escolas, colégios. Como poderemos ser homens do amanhã, se não temos escolas ao nosso dispor?", questiona a carta de 2 de agosto de 1986.

A correspondência enviada de Livramento de Nossa Senhora (BA), por alguém da mesma faixa etária, também pedia melhorias na educação em todo o Brasil e não apenas na Bahia. A carta ainda ressaltava o quanto isso era importante para que todos entendessem a importância do que estava acontecendo no país naquele momento. "Melhorar o ensino educacional do país, para que a maioria dos brasileiros entendam melhor o que é nação, constituição, e saberem votar. Melhores condições de vencimentos mensais para os professores da rede de ensino municipal dos municípios do Estado da Bahia. E melhorar a cultura brasileira", pedia o texto de dia 1º de março de 1986.

Diversos outros temas eram abordados pelos autores das cartas. De Salvador, um correspondente com idade entre 30 e 39 anos fez um pedido em favor dos idosos. "Criação de uma lei que valorize a mão-de-obra do idoso, acabando com a grande discriminação existente", dizia a missiva de 3 de março de 1986. Também na capital baiana, outra pessoa na faixa de 40 a 49 anos pedia que o esperanto fosse incorporado ao currículo. A língua foi criada em 1887 pelo estudioso de línguas polonês Ludwig Lazar Zamenhof para ser uma espécie de idioma comum de comunicação internacional. "Inclusão do Esperanto no currículo escolar. Exigência de concurso público para todos os cargos assalariados (públicos e privados)", dizia a carta de 20 de agosto de 1986.

O ensino de esperanto foi muito pedido nas cartas pelo Brasil, assim como melhorias no INPS, o Instituto Nacional de Previdência Social, órgão extinto em 1990, quando se fundiu ao IAPAS para formar o atual INSS. "Uma lei para acabar com a fila do INPS. Voto para o analfabeto, que conste na célula o retrato do candidato. (...) Uma lei que diminua o tempo de serviço para a aposentadoria dos homens", pedia a carta de 21 de fevereiro de 1986, escrita por pessoa na faixa dos 30 aos 39 anos, de Vitória da Conquista (BA).

Constituição Cidadã

José Sarney, o 1º presidente civil após a ditadura, e Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Constituinte, juram obediência à Constituição
José Sarney, o 1º presidente civil após a ditadura, e Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Constituinte, juram obediência à Constituição | Foto: CEDOC A TARDE / 06/10/1988

No dia 5 de outubro de 1988, após 20 meses de trabalho, a nova Constituição Federal foi promulgada. “A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar", afirmou o deputado Ulysses Guimarães ao término de seu discurso na solenidade de promulgação, segundo registro feito em A TARDE, na edição de 6 de outubro de 1988. "A visível emoção do presidente da Constituinte, ao anunciar a nova Carta, e as mãos trêmulas do presidente José Sarney, ao prestar juramento à nova Constituinte foram as cenas marcantes da sessão solene de ontem. Mais de dois mil convidados, entre ministros de estado, governadores, delegações estrangeiras e diplomatas, participaram da festa", continua o texto da reportagem.

O apelido de Constituição Cidadã foi dado por Ulysses Guimarães. O texto consagrou princípios como a dignidade da pessoa humana, soberania popular, pluralismo político e direitos sociais. As Cartas da Constituinte influenciaram diretamente vários dos principais artigos, como o 205, que garante que a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família; o 196, que afirma que a saúde é direito de todos e dever do Estado, e deu origem ao SUS; os artigos 5º, I, e 226, §5º, que garante igualdade entre homens e mulheres, e assegura direitos iguais na sociedade conjugal; e o Art. 5º, VI, que assegura a liberdade de consciência e de crença.

"A Constituição é a lei máxima de um país porque orienta o seu ordenamento jurídico, permitindo que o país se organize em termos de legislação e esperança de justiça. A Constituição Brasileira de 1988 é importante, pois está em um contexto de redemocratização e firma as bases para a consecução do estado democrático de direito. Ela é muito robusta e seus 250 artigos foram escritos como forma de matizar aquilo que o Brasil não queria ser mais: um país de ditadura e atraso. No lugar, afirmava que agora o Brasil seria um país de direitos e progresso. Essa expectativa foi alcançada e precisa ser protegida”, afirma o historiador Carlos Zacarias.

Manchete anunciava a instalação da Assembleia Nacional Constituinte

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Crédito: CEDOC A TARDE / 01/02/1987

Manchete anunciava a promulgação da nova Constituição, em 1988

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Crédito: CEDOC A TARDE / 06/10/1988

*Com a colaboração de Tallita Lopes

*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época em que as reportagens foram originalmente publicadas

*Material elaborado com base no acervo do CEDOC/A TARDE

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