CENTENÁRIO
Maria de São Pedro: um século de sabor e luta no coração de Salvador
Comemoração reuniu convidados no Mercado Modelo para celebrar os 100 anos do Restaurante Maria de São Pedro

Por Andrêzza Moura

A noite desta quinta-feira, 2 de outubro, foi marcada por emoção, memória e resistência no Mercado Modelo, no bairro do Comércio, em Salvador. O centenário do Restaurante Maria de São Pedro, um dos mais tradicionais da capital baiana, foi celebrado com grande comoção por familiares, admiradores e personalidades culturais e religiosas da Bahia.
Mais do que um restaurante, o Maria de São Pedro é um monumento vivo da culinária e da história afro-baiana. Fundado em 1925 por Dona Maria de São Pedro – mulher negra, analfabeta, mas detentora de um talento culinário singular e uma fé inabalável no ser humano – o espaço se consolidou como ponto de encontro de figuras ilustres da política, das artes e da intelectualidade brasileira e internacional. Entre os frequentadores que se renderam ao tempero inesquecível de Dona Maria estão nomes como Jorge Amado, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Pablo Neruda, Carybé, Vinícius de Moraes, Getúlio Vargas e Martinho da Vila.
Atualmente, o restaurante é conduzido pelas netas Maria das Graças Marques, 62, e Célia Guimarães, 57, que há oito anos preservam com dedicação o legado da avó. Em seu discurso emocionado durante o evento, Maria das Graças lembrou a trajetória da fundadora, destacando a força de uma mulher que, mesmo em uma época de profundas desigualdades raciais e sociais, conseguiu erguer um empreendimento duradouro e respeitado.

Dona Eunice Santos Marques, de 90 anos, única filha viva de Dona Maria de São Pedro, marcou presença na cerimônia. Ela assumiu a administração do restaurante ao lado do irmão, Luiz Domingos de Souza, falecido em 2017, aos 77 anos. Dona Maria de São Pedro teve 14 filhos.
Mesmo com a saúde fragilizada, Dona Eunice fez questão de participar ativamente da celebração e chegou a dançar ao som da cantora Clécia Queiroz. Além de Clécia, outros artistas locais animaram a festa, entre eles a Banda Tio Elétrico.
Resistência e legado
“Estar comemorando hoje os 100 anos de existência do restaurante de Maria de São Pedro, para mim e para toda a minha família, é uma honra. Preservar o legado de Maria de São Pedro, a fundadora, mulher preta, resistente, empreendedora nata, mesmo sem ter a cultura do escrever, do ler, mesmo em um tempo em que ser preta era complicado, era uma resistência muito grande. Imagine você, preto, naquele tempo, conseguia há 60, 80, 90, 100 anos atrás”, contou Gracinha, como é carinhosamente chamada.
“Então, foi muita resistência, muita força. Amar o que fazia. Amava cozinhar. Amava uma pessoa dizer que o sabor dessa comida é inesquecível. Tanto que conseguimos conquistar várias pessoas ilustres, como Jorge Amado, Dorival Kahn, Mikaim, Sartre e vários outros. Perdoem aqueles que eu não falei. Foram muitos. Políticos da época, aí que ela começou a ter fama. Todos iam ao nosso restaurante, o restaurante dela na época, ficavam assim, emocionados com o que ela servia, a forma que ela cozinhava. E é um orgulho, é um orgulho. Eu tenho um total respeito por essa mulher, total. Tento imitar. Não serei igual nunca. Tentamos conservar e preservar, eu e toda a minha família”, complementou a neta.
A história do restaurante se confunde com a história da própria cidade. Do seu início vendendo comidas nas ruas do Comércio, passando por diversos endereços até se firmar nas imediações do Elevador Lacerda, em 1949, o restaurante enfrentou inúmeras dificuldades, incluindo dois incêndios. Mas resistiu.
“Duas vezes sofremos a ação do fogo. Mas, religiosamente, pelo lado africano, vamos dizer, foi o fogo de Xangô, a resistência Maria de São Pedro, que não tinha uma religião, não era de candomblé, não era espírita, não era católica, mas tinha um total respeito pelas religiões. Então, vamos dizer assim: uma mulher de fé, fé de acreditar, porque também isso contribuiu bastante para a sua fama, essa fé que ela tinha no ser humano, nas pessoas, acreditava, gostava de pessoas”, concluiu Maria das Graças.
Ancestralidade viva na mesa e na memória
O evento contou com a presença de nomes importantes da cena cultural e religiosa, como Mameto Kamurici, do Terreiro São Jorge Filho da Gomeia, que reforçou a importância de reconhecer espaços negros como territórios de memória.

“É importantíssimo, principalmente para nós, povo negro, nós sermos reconhecidos, reconhecer os espaços do nosso território. Então, é importantíssimo. Esse restaurante é um restaurante que eu me lembro da minha infância, da minha avó, vir ali comprar o peixe na rampa, vir aqui comer, tem muitas histórias para serem contadas, e é importantíssimo para todos nós, culturalmente, historicamente, e dentro da consciência de quem nós somos, povo negro, e como uma pessoa que conseguiu, num lugar desse, manter a memória e esse lugar vivo até os dias de hoje. Gente, isso é extraordinário”, celebrou Mameto.
Já a atriz, esteticista e empreendedora Negra Jhô ressaltou a importância espiritual e ancestral do momento. “É uma grande emoção estar aqui participando dessa história ancestral, esses valores, esses 100 anos. Que venham mais 100. Eu tenho plena certeza que os nossos ancestrais estão muito felizes em esse aquilombamento aqui, reverenciando essa força. Restaurante Maria São Pedro é forte. Eu mesma, eu estou muito, muito emocionada e feliz por estar aqui. Parabéns, Oducodu”, exaltou Negra Jhô.
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Ao longo dos anos, o restaurante se tornou não apenas referência em comida baiana autêntica, mas também um símbolo da resistência negra, da força feminina e da cultura de matriz africana. Como resumiu o sociólogo Ailton Ferreira.
“O Maria de São Pedro respirou junto com a democracia e imprimiu sua marca do mais puro dendê no novo mundo das tecnologias, sem perder a raiz que vem do barro, da ancestralidade”, disse ele.
Hoje, com cerca de 30 empregos diretos e muitos indiretos, o restaurante segue sendo um exemplo de como tradição, sabor e resistência podem caminhar juntos. De frente para a Baía de Todos-os-Santos, já não espera os saveiros do Recôncavo, mas continua a servir histórias, memórias e afetos em forma de comida, feita com fé, com luta e com muito dendê.
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