PERFIL
O segredo da trajetória de Wagner Moura que só a Bahia conhece
Estrela internacional arrasta público em espetáculo com todos os ingressos esgotados na Bahia

Por Gilson Jorge

Durante a pré-estreia do filme O Agente Secreto, no Cinema São Luiz, em Recife, no último dia 11 de setembro, um homem se aproxima do ator Wagner Moura, 49, o cumprimenta e se apresenta como o repórter que gravou, em 1987, a famosa entrevista em Rodelas, no interior da Bahia, com o menino de 11 anos que fazia considerações, na perspectiva de um garoto, sobre a inundação do município onde cresceu. "Ele disse que eu ia atrás deles, que só queria estar com a equipe de reportagem", enfatiza o ator, que não lembrava os detalhes desse episódio na sua infância.
O empreendimento construído em Rodelas era a Barragem Itaparica, posteriormente batizada de Barragem Luiz Gonzaga, que alagaria também um terreno habitado por uma comunidade tuxá.
Sete anos depois do seu primeiro registro em vídeo, Wagner entra para a Faculdade de Comunicação da Ufba, mas paralelamente se matricula no curso livre da Escola de Teatro da Ufba e inicia uma fascinante carreira artística, que o levou a ganhar este ano o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes, por sua atuação em O Agente Secreto, do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho.
Três décadas após pisar nos palcos soteropolitanos, o menino curioso que perseguiu uma equipe de reportagem no sertão nordestino se tornou um dos grandes nomes do cinema mundial. É ele agora quem tem atrás de si os meios de comunicação.
Wagner está de volta à sua amada Salvador e, um dia depois de participar no Farol da Barra da manifestação contra a PEC da Blindagem e a anistia a golpistas, recebe a imprensa para falar sobre a estreia de sua nova peça, Um Julgamento – depois do Inimigo do povo, um texto do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906) sobre um cientista que denuncia a contaminação das águas de sua cidade e é acusado pelas autoridades locais de prejudicar a economia.
“Encenamos as questões que nos tocam. E esse texto está na minha cabeça há muito tempo. A decisão de montar a peça não foi influenciada pela pandemia, mas a história tem muito a ver com a postura das autoridades naquele contexto", afirma.
Enquanto o ator concede entrevista exclusiva a uma emissora de TV, um pequeno batalhão de repórteres o aguarda para uma coletiva, em uma sala recém-recuperada do Trapiche Barnabé. O espaço é um imenso casarão do século 18 em ruínas, que há dez anos vem sendo gradualmente recuperado pelo empresário francês Bernard Attal.
Leia Também:
Ingressos esgotados
A área de mil metros quadrados onde a peça será encenada, de 3 a 12 de outubro, com ingressos esgotados, foi inaugurada em julho passado e está destinada a ser um espaço de eventos. No início deste ano, o ator Marcelo Flores, que integra o elenco do espetáculo e é amigo de Dentinho, gestor do Trapiche Barnabé, sugeriu o novo ambiente aos produtores da peça.
À frente da sala onde aconteceria a coletiva, alguns jornalistas matam o tempo brincando com um filhote de cachorro que invadiu há três semanas o trapiche e fez dali o seu lar. Enquanto o cãozinho recebe carícias, alguns jornalistas novos estão excitados com a cobertura. Uma repórter fala ao telefone com a sua mãe e informa que está na coletiva com o ídolo baiano.
Wagner tem um carinho especial pelos focas, como se chamam os jornalistas em início de carreira. Quando é entrevistado por jovens repórteres em Salvador, o ator costuma interromper os questionamentos e perguntar se o jornalista estudou na Facom, a Faculdade de Comunicação da Ufba. E esse afeto tem história.
Ele credita a sua carreira profissional, em parte, à sua experiência universitária e ao ambiente que o rodeava. Em meados da década de 1990, a Cantina de Vovô, na Facom, era frequentada por nomes que depois atuariam em outras áreas, como o escritor e ex-deputado federal Jean Wyllys, a cineasta Liliane Mutti, a fotógrafa Sandra Delgado – companheira de Wagner, que anunciou esta semana a sua estreia na direção de ficção com o longa-metragem A Estrangeira – o cineasta Lula Oliveira e a dramaturga Manuela Dias, autora da versão atual da novela Vale Tudo.
E também veteranos da Facom, como o cineasta Sérgio Machado, que depois dirigiria Wagner no filme Cidade Baixa, a escritora Josélia Aguiar, autora do livro Jorge Amado - Uma biografia, o jornalista, escritor e editor de livros Gonçalo Júnior, e o escritor Franciel Cruz, possivelmente a melhor tradução da intelectualidade baiana forjada na balbúrdia extracurricular da cantina da Facom dos anos 1990. E que foi descrito por Wagner como o melhor texto da sua geração na faculdade.
Entre as atrações nas sextas-feiras da cantina, quando terminavam as aulas, três apresentações musicais de Wagner e de amigos como Gab Carvalho, que fundou em 1992 uma banda com ele e com outro amigo, Barbosão, ainda no ensino médio, antigo segundo grau, no Colégio Mendel.
No YouTube, é possível encontrar um vídeo em que o ator canta na cantina I will survive, hit de Gloria Gaynor. O grupo, aliás, começou fazendo covers da banda The Cure. "A admiração que eu tenho por Wagner vem desde o tempo que o vi cantando no ensaio, na casa de Barbosão. E eu passei a admirá-lo também no teatro", lembra Gab, que enaltece a maneira como o amigo conduziu a sua carreira.
"Ele fez escolhas corajosas, inclusive refutando alguns papéis em novelas no horário nobre", pondera Gab, destacando o fato de que amizade não mudou de patamar depois que Wagner se tornou um astro internacional.
Com Wagner já famoso, a banda foi batizada de Sua Mãe, incorporou mais músicos, como os colegas de Facom Sérgio Brito e Claudinho David, e fez apresentações em outros estados, além de aparecer no Altas Horas e no Programa do Jô. Mas em função das diferentes agendas, especialmente a atribulada rotina do ator, a banda deixou de se reunir.
Na Bahia

Baianos costumam brincar que mais importante do que fazer sucesso no mundo é fazer sucesso na Bahia. E Wagner começou a despertar a atenção no meio artístico local com suas atuações em peças como A Casa de Eros e Abismo de Rosas. Mas o ator principiante impressionou o cineasta Sérgio Machado ainda em um exercício no curso livre de teatro de Luiz Carlos Vasconcellos, que tinha na mesma turma nomes como Laila Garin, João Miguel, Ana Paula Bouzas e Ludmila Rosa.
Sérgio lembra de Wagner nessa oficina fazendo um exercício em que cantava uma música de ninar e se jogava contra uma parede. "Ele devia ter uns 18 anos. Pensei: gente, que coisa mais poderosa. Esse cara tem uma visceralidade, uma capacidade de entrega, um destemor. Uma coisa realmente assustadora", diz o cineasta.
Uma curiosidade é que apesar da admiração por Wagner, o ator não era uma opção inicial para o elenco de Cidade Baixa. Sérgio havia planejado que os dois protagonistas masculinos do filme seriam negros. Lázaro Ramos, que já tinha sido convidado para o filme, fez lobby para incluir o amigo na produção, mas o diretor estava relutante. Até ser convencido em uma festa na qual notou a química na interação entre Lázaro e Wagner, que ouviu do diretor um pedido para que no filme fosse mantida a energia daquele menino na oficina do curso livre.
"E aquilo não se perdeu. É raro você manter aquele frescor, aquela força, 30 anos depois", comenta Sérgio. A energia criativa de Wagner, inclusive, o levou a produzir e dirigir o filme Marighella, sobre o guerrilheiro baiano Carlos Marighella, morto pela ditadura militar.
Formada na mesma turma de Comunicação Sociai de Wagner, a jornalista e atriz Jussilene Santana considera que Wagner sempre foi muito focado e objetivo. "Ele me parecia alguém que pisava na Facom querendo ser ator. Ator de cinema. E ele estava de mãos dadas com os meninos que também queriam isso. A Facom dos anos 90 era um polo do audiovisual e isso estava começando no Nordeste", afirma Jussilene, que é diretora do Instituto Martim Gonçalves, um centro voltado ao fomento da economia criativa e à formação de artistas no Rio de Janeiro.
Vencedor da quinta edição do Big Brother Brasil, ex-deputado federal pelo PSOL, primeiro parlamentar assumidamente homossexual do país e pioneiro no enfrentamento à extrema-direita no Congresso, o jornalista, professor e escritor Jean Wyllys tem uma relação afetiva com Wagner desde os tempos da faculdade.
Jean considera que, com o passar do tempo, os historiadores vão olhar para a Facom dos anos 90 e registrar o espírito de época, tradução da expressão alemã Zeitgeist, cunhada no século 18, que sintetiza o ambiente cultural, intelectual e sociológico de determinados espaços geográficos e períodos. "Às vezes, você tem o talento mas não encontra o ambiente para desabrochar. E a Facom foi esse espaço para nós, seja os que alcançaram mais projeção ou menos projeção, não importa", afirma o escritor, que acaba de lançar o livro O anonimato dos afetos escondidos.
O escritor elogia o artista conterrâneo pelo seu talento e pelo seu engajamento em causas sociais. "Eu o considero o melhor ator de sua geração no mundo. E acho que quando o artista participa de forma mais clara de processos democráticos e de afirmação da cidadania, ele se torna ainda melhor. E ele faz isso correndo todos os riscos", afirma Jean.
A Máquina
Na virada do milênio, o convite de outro diretor pernambucano, o dramaturgo João Falcão, para integrar o elenco da peça A Máquina, foi um marco para a nacionalização do nome de Wagner, bem como de seus colegas e amigos Lázaro Ramos e Vladimir Brichta. "A Máquina levantou muito a nossa autoestima. A gente começou a acreditar. Passaram a nos convidar para fazer filmes", diz o artista.
O sucesso em larga escala viria com Tropa de Elite e o amado e odiado Capitão Nascimento, que provocou incômodo no público progressista pela reação entusiasmada da plateia nas cenas em que policiais praticavam torturas e execuções. Um sintoma de como andava, nos subterrâneos da alma, o pensamento de parte da sociedade brasileira.
A participação de Wagner em novelas foi escassa, mas intensa, com Olavo, de Paraíso Tropical, ajudando a popularizar o seu nome. Os convites para filmar no exterior também ajudaram a diminuir o interesse do ator pela teledramaturgia nacional.
Até porque para viver o papel do megatraficante Pablo Escobar na série Narcos e algumas produções de Hollywood, Wagner se mudou com a família para a Colômbia e depois para os Estados Unidos.
O ator, que no início de sua carreira internacional sofreu críticas no Brasil por seu sotaque ao falar em inglês, afirma que nunca pretendeu passar por um local nos Estados Unidos e considera isso um trunfo.
Hollywood tem atores do mundo inteiro. E muitos deles tentam se metamorfosear em atores americanos. É um desserviço a si próprio. Você nunca vai ser igual a eles. É que nem aquela cena de Bacurau em que os americanos falam: vocês não são iguais a nós
Aliás, assim como o colega argentino Ricardo Darín, o astro baiano afirma ter recusado papéis em Hollywood que reforçavam estereótipos latino-americanos. "Aqui eu sou branco, lá não. O que eu quero como ator é ir para cima de personagens escritos para brancos", aponta Wagner, que protagonizou ao lado de Kirsten Dunst o filme Guerra Civil.
Entrevistados

Na sala do trapiche preparada para a coletiva, a mesa onde se sentaram os entrevistados tinha nove microfones de meios de comunicação e dois celulares, para captar as falas. O grupo toma posição e o cachorro que circula pelo trapiche se abanca perto da mesa, chamando a atenção da atriz carioca Julia Bernat, que na peça interpreta a filha do personagem de Wagner. A atriz está considerando adotar o pet.
Julia teve contato com Wagner quando tinha 11 anos e os seus pais, também atores, a levaram para assistir A Máquina, no Rio. Tempos depois, já atuando, a carioca ficou em choque ao saber que o seu ídolo estaria na plateia, observando seu trabalho na peça A Hora do Lobo, também dirigida por Christiane Jatahy. "Eu acho Wagner um dos artistas mais incríveis do Brasil. Eu que o vi quando eu era criança penso: Caraca! Estou trabalhando com ele".
A diretora da peça, Christiane Jatahy, também teve seu primeiro contato com Wagner através de A Máquina. E em 2022, quando ela apresentou em Los Angeles o espetáculo Depois do Silêncio, baseado em Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, o artista baiano foi assisti-la e os dois começaram a planejar uma parceria.
"Eu mexi nos meus projetos e ele mexeu nos dele para a gente fazer essa peça", conta a renomada diretora, que declara haver entre os dois muitas afinidades artísticas, estéticas, pessoais e políticas. "Não é à toa que Wagner é um artista extraordinário. Ele é esse artista porque é uma pessoa de uma profundidade, de uma sensibilidade, de uma qualidade que transbordam nele".
Siga o A TARDE no Google Notícias e receba os principais destaques do dia.
Participe também do nosso canal no WhatsApp.
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Siga nossas redes