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CRÔNICA

Preta Gil, Bob Marley e a coragem silenciosa de quem ensina a viver

Leia a Crônica da Muito deste domingo, 14

ró-Ã*

Por ró-Ã*

14/09/2025 - 11:27 h
Lembranças de mulheres retadas que transformaram gerações
Lembranças de mulheres retadas que transformaram gerações -

Recebi mensagem no zap de um grupo ao qual aderi enquanto frequentava reuniões espíritas online. Pedia orações pela alma de um irmão que retornara à Pátria Espiritual, e pela primeira vez soube de alguém chamado Anito, coisa mais linda! Como, no entanto, nem todo mundo tem o mesmo gosto meu, logo me perguntei se teria sido vítima de deboche desde pequeno por carregar versão masculina de nome geralmente atribuído a mulheres.

Detesto viver sob interrogações, neurose que o algum tempo nas garras de Lacan ainda não mandou pros infernos. Entre outros quesitos, os sofrimentos infligidos às pessoas pelas razões mais cretinas me fazem ficar matutando sobre este mundo descompreendido, palavra que me ensinou a querida Lúcia, nossa cozinheira durante muitos anos, assassinada por um câncer antes dos 60.

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Pele de carvão radioso, quase azul, cultivava longas unhas de vermelho permanente, fazendo com que meu pai azucrinasse sem trégua os miolos de minha mãe, que transmitiu a Lúcia seus conhecimentos da arte culinária. Aludia aos germes escondidos debaixo do esmalte rubro e nos contaminariam a todos, porém é fato que nenhum de nós jamais teve caganeira por causa dos inimigos invisíveis ali abrigados. Acabou chefiando a cozinha de um restaurante da moda quando se cansou da implicância de meu pai e caiu fora.

Não tem por que a gente teimar numa situação se pode sair dela. Entendo quem se submeta porque outras possibilidades parecem inexistir, mas geralmente há opções, umazinha que seja. Lúcia podia ter se acomodado com o emprego estável, a vida de conforto satisfatório, o tratamento carinhoso recebido da família e a gratidão pelo ofício que aprendeu. Só precisava de coragem para se livrar do patrão que nunca a destratou, apenas vivia aporrinhando sobre o perigo das unhas pelas quais ela tinha tanto apreço. Quer saber? Vou tomar meu caminho!

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A decisão foi anunciada pouco tempo após a manhã quando, enternecida, me comunicou a morte de Bob Marley. À época, não liguei as coisas, porém hoje acredito na inspiração que ele lhe trouxe. Um cara de sucesso, um ídolo. Imagine se tivesse tomado conhecimento, ainda menina, de gente como Luísa Mahin e seu filho Luís Gama. Já era um espírito bravo, disposto a abandonar os arredores de Feira de Santana rumo a vida melhor na capital. Tinha 18 anos e não lembro se era alfabetizada; se não, deve ter aprendido as primeiras letras com a patroa e incentivada a frequentar uma escola noturna. Não precisava acordar antes das 9, minha mãe sempre fez questão de ela mesma preparar o café da manhã do marido e criançada.

Nascida em 1927, D. Neusa foi uma das poucas mulheres de sua geração a obter um diploma universitário da Ufba. Queria fazer Medicina, porém a desencorajaram: coisa de homem. Virou farmacêutica. Trabalhou até a aposentadoria enquanto criava cinco filhos; com ajuda, porque podia pagar. Aposentada, continuou inventando arte para não ficar quieta.

Eu criança estranhava que ela não fizesse como as irmãs, donas de casa, e ela dizia: Gosto de ter meu próprio dinheiro. Veja se eu dependesse de seu pai até pra comprar uma revista? Então compreendi que a vida supostamente ideal de minhas tias significava subalternidade, embora D. Neusa a exercesse através das atenções desmedidas a meu pai. Ele se levantava cedo, tinha cirurgias agendadas e precisava anestesiar os pacientes. O Cão que me faria despertar às 5h30 por marido nenhum, mas minha mãe estava entre lá e cá ainda.

Puxa, Anito, só lhe dediquei o primeiro parágrafo, apesar de você ter sido minha inspiração. Duas mulheres retadas se impuseram e eu não sei nada a seu respeito, além do nome encantador. Era galego? Preto-claro feito Marley? Retinto tipo Lúcia? Podia ter inventado sua trajetória, costurando retalhos de uns e outros; entretanto, Lúcia e minha mãe me soterraram a imaginação.

Se venceu as maldades humanas, talvez tenha sucumbido às que nos acometem sem noção, como a que levou Preta Gil, outra mulher inspiradora, combatida sem dó pela valentia e o incômodo que causava.

Mais cedo ou mais tarde, nos reuniremos do outro lado, estando talvez tão mais felizes que nos surpreendam as orações a nós dedicadas. De todo modo, atendi ao pedido e torço para que você se encontre nas melhores companhias.

*Escritora, autora de Dor de facão & brevidades

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