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OLHARES

Um tempo saturado de “agoras”

Confira a coluna da Muito desta semana

Por Priscila Miraz*

22/07/2024 - 7:00 h
Uma das obras da exposição
Uma das obras da exposição -

Ana Martins Marques, em Como se fosse a casa (uma correspondência), explora espaços, objetos, matérias, características físicas e temporalidades como formas possíveis de serem habitadas como casa: retrato, martelo, colar, o cabelo cinza de alguém próximo, o cansaço, a miopia, a memória. Todo o poema, mas em especial alguns versos, me remetem à expo-cápsula de Milena Ferreira, Das coisas que a terra não come, que segue aberta até dia 27 de julho na RV Cultura e Arte, como em Minha casa é minha coleção de cacos, ou ainda Minha casa é a memória da casa demolida.

A casa como coleção de cacos, como memória do que foi agora que é ruína, vestígios de espaços que confluem numa reelaboração do passado a partir do presente como construção, portanto como memória, mas também como pensamento sobre o contemporâneo, insere as três séries que fazem parte desse projeto, nas investigações da artista, que desde 2019 traz para o centro de seus interesses a temporalidade e a materialidade em processos de gravura para explorar o espaço urbano naquilo que comporta de mais íntimo, as formas de morar, que quando em ruínas, se dão ao alcance das mãos abertas, porosas: “uma casa, uma membrana entre o corpo e noite”, segue Marques.

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Em sua primeira exposição individual, Vestígios, que aconteceu em 2022, também na RV Cultura e Arte, Milena fez uso de materiais que coletou, como por exemplo, fragmentos de paredes de construções em ruínas no Centro Histórico de Salvador, para pensar a partir de uma arqueologia dos espaços habitados como moradia, para, em suas palavras, “investigar as relações de transformação constante entre o indivíduo e o local que habita: onde imprimimos nossa marca, integramos coisas, relacionamos elementos e vamos nos construindo”.

Ao situar a busca por essa transformação constante entre indivíduo e lugar de habitação, a artista também está articulando no objeto escolhido como repositório de sentido dessa relação, o fragmento, a ruína, seu pensamento sobre a história e sobre a memória. Lembro aqui de uma frase do artista paulista Geraldo de Barros: “Se só guardamos lembranças dos momentos tristes ou alegres: enlouquecemos. Felizmente existem os restos”.

Imagem ilustrativa da imagem Um tempo saturado de “agoras”
| Foto: Caixa de Fósforo | Divulgação

É nos restos que as histórias fulguram. Em Textura é sentimento (2021), colagem com tinta, massa acrílica e reboco sobre papel, Milena traz a montagem de uma arqueologia do invisível das casas onde morou. As camadas de reboco – que quando arrancadas das paredes, muros, pilares, daquilo que as sustentou por anos, se re-conformam, criam para si, no acaso do gesto, as formas que dali para frente serão as do tempo – são sobrepostas a outras camadas surgidas da mesma maneira, e se adaptam em sua nova configuração de cores velhas, ajustam as linhas finas onde quase se racharam liberando paisagens, fragmentos silenciados do passado. Segue Marques: “As casas abandonam a si mesmas/ fogem de si mesmas/ um dia você retorna/ e a casa não está lá/ está apenas seu molde/ casca ou carcaça/ sai então à caça/ da casa/ em viagem/ ou fica lá/ onde já não está”.

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Em Habitar é obra (2022), Milena cria, a partir de azulejos coletados nas ruas de Salvador, painéis que são acomodações momentâneas, encaixes de detalhes do doméstico, naturezas mortas pintadas, muito coloridas, em acrílica sobre o branco dos azulejos: filtros de barro, máquina de costura, botijão de gás, cadeira que sustenta um ventilador, um banco com uma pilha de livros, outro com uma montanha de roupas limpas ou sujas, brinquedos, carriolas, prendedores de roupa, panelas. A casa mais singular que é a casa de todo mundo.

É o exercício de ver nos recortes, um a um, os indícios das experiências sensíveis compartilhadas no contínuo do dia a dia. É o exame duplo da obra: tanto como fenômeno social, quanto como mônada, elemento fundacional de todas as coisas. Nesse movimento criativo, o corpo da memória – o corpo ausente é invocado em cada partícula da ruína chamada para significar fora de contexto – foi seu gerador e é seu lugar de fugacidade tensionado por forças contraditórias do tempo, passado e presente, e que busca atualizar essas forças. Tudo começou e continua pelo corpo que é casa, fábula, sonho.

Milena Ferreira reconduz a questão da memória a partir dos efeitos do poder sobre os corpos, criando um discurso sobre a memória, que segundo a historiadora da arte; Angélica Melendi, está presente no subtexto de trabalhos de artistas contemporâneos latino-americanos que tratam de experiências extremas.

“Num país como o Brasil, em que a moradia ainda é um privilégio para poucas pessoas, Milena chama a um debate sobre o que é ter teto, o que é construir subjetividades em um terreno de acolhimento, o que é deixar memória por entre cômodos”, como afirma a curadora Galciani Neves, no texto crítico de Vestígios.

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Acessar o sensível dessas questões é buscar a compreensão histórica em sua dimensão de ruína, entendendo que a ideia de história como linha progressiva sempre silencia os acontecimentos que fogem à sua marcha. A história que Milena busca arqueologicamente está mais próxima da ideia formulada por Walter Benjamin em Sobre o conceito da História: “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’”.

Nas séries apresentadas na expo-cápsula Das coisas que a terra não come, a casa se aprofunda e é entranha, chão, pedra, ossos e infância. A série Tropeços é uma coleção de matrizes de água-tinta que traduzem formas e texturas das pedras que seu pai usou para calçar o chão de uma casa de sua infância, e que a artista hoje pode acessar em fotografias.

Imagem ilustrativa da imagem Um tempo saturado de “agoras”
| Foto: Caixa de Fósforo | Divulgação

Segundo João Victor Guimarães, no texto curatorial da exposição, Tropeços “nos leva a encarar os diversos mecanismos de estruturação da memória. A pedra que não existe mais como foi vista, foi acessada através de fotografias de um momento que nunca mais se repetirá. Temos uma elaboração sobre a reprodução do infinito que resulta no finito e o compõe. O chão para sempre existirá, mesmo que se altere”. Sempre existirá como um outro. Vi mais não lembro é um desenho em carvão sobre papel que explora novamente a textura e as formas da pedra, agora não isoladas, mas como terreno rochoso.

Na série que dá nome à exposição, a artista complexifica o tema do cotidiano, da casa e do morar, quando acessa a memória da infância pelo brinquedo. Em Das coisas que a terra não come, referência invertida ao dito popular “se fosse bom a terra comia”, a artista apresenta 20 objetos feitos de cimento queimado, uma mistura de cimento, areia e pó xadrez, semelhante a um pequeno tijolo marrom avermelhado, em que grava brinquedos de sua infância que são miniaturas de objetos das casas, como sofá, abajur, cama, cadeiras, castiçal, penteadeira, fogão, armário, pia de cozinha.

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A artista explora a gravura em sua capacidade de modelagem, impressão, espacialidade e reminiscência, fazendo surgir na materialidade desses objetos uma estrutura de memória.

O filósofo Giorgio Agamben, em Infância e história, acredita que as crianças brincam com todos os objetos que encontram, e que muitas vezes essas apropriações manifestam-se por meio da miniaturização dos objetos de usos cotidianos, carros, fogões, armários, que assim passam a ser brinquedos não apenas pela escala de tamanho, mas pelo paradoxo temporal que sofrem no ato de brincar, como, por exemplo, no “agora eu era”, na música de Chico Buarque, João e Maria. De novo o agora, que aqui tem sua fugacidade marcada pelo verbo no pretérito imperfeito. O brinquedo é o que pertenceu à esfera do prático-econômico, mas já não mais, e sendo assim, para Agamben, “a alma do brinquedo seria, então, algo eminentemente histórico, já que o brinquedo conservaria a temporalidade humana contida no modelo sagrado ou econômico, mesmo após a miniaturização e o desmembramento”.

Dessa forma, podemos acessar as miniaturas de Das coisas que a terra não come como uma estrutura da memória e da infância, a incorporação física da repetição do tema da natureza morta que está presente em Habitar é obra, mas agora sem as cores, em sua estrutura óssea de artefato arqueológico novamente exposto à luz.

* Doutora em História Cultural e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia | [email protected]

*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE

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Tags:

agenda cultural Cultura exposição Milena Ferreira RV Cultura e Arte

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