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A africana que queria uma foto sua tornou-se notícia de primeira página em A TARDE

Publicado sábado, 10 de julho de 2021 às 06:01 h | Autor: Cleidiana Ramos*
A representação de mulheres e homens negros era feita a partir do olhar do “outro” | Imagem: Arestides Baptista | Reprodução Cedoc A TARDE | 16.08.1994
A representação de mulheres e homens negros era feita a partir do olhar do “outro” | Imagem: Arestides Baptista | Reprodução Cedoc A TARDE | 16.08.1994 -

Maria Izabel – não se registrou o sobrenome – chegou à redação de A TARDE com um pedido: queria ser fotografada. O desejo foi atendido e virou pauta de uma reportagem publicada há exatos 98 anos completados, coincidentemente, hoje. O texto, apesar de curto, é uma preciosidade, assim como a fotografia de Maria Izabel, afinal é raridade, mesmo agora, uma fonte procurar a reportagem para fazer um registro sobre algo que lhe interessa. Atualmente, quando isso ocorre, é no contexto de denúncias, o que, geralmente, demanda anonimato. Há outro detalhe nessa história: trata-se de uma africana de 106 anos, ou seja, uma mulher de um grupo cultural que aparecia, na maioria das vezes, em registros iconográficos a partir da vontade de quem os fazia e que às vezes nem registrava o nome da pessoa que ficou diante das suas lentes.

Publicado na edição de 10 de julho de 1923, o texto é anunciado com o seguinte título: “Vaidosa, apesar dos seus 106 annos”. E tem um complemento, que, em linguagem gráfica de jornal pode-se chamar linha fina: “Maria Izabel veio à ‘A TARDE’ para se fotografar”.

A imagem, ainda reproduzida com a técnica do clichê – ou seja, a sensibilização de uma placa de chumbo para fixação do registro – necessitou de alguns cuidados para ficar mais nítida, como um círculo em seu entorno na publicação de 1923. Era o que se tinha de técnica, mas embora só tenhamos disponível a cópia digital da edição impressa, graças às potencialidades das novas tecnologias, a imagem tem qualidade que nos permite algumas considerações sobre ela.

Maria Izabel ostenta cabelos curtos. O seu traje é formado por uma camisa branca, de mangas longas. Nos ombros ostenta o chamado “ pano da costa” com uma ponta jogada sobre um dos seus ombros e reaparecendo próximo à cintura; a saia mostra um padrão escuro e ela segura uma bengala. É uma pose cuidadosa, o que possivelmente demandava algum tempo para o registro muito mais demorado se comparado, por exemplo, ao registro das câmeras fotográficas e ainda assim as analógicas. O texto deixa entender que o seu relato foi sendo apresentado à medida que o processo para a fotografia estava ocorrendo.

O traje de Maria Izabel é semelhante aos registros que mostram mulheres negras do final do século XIX, especialmente. A forma de se vestir tanto lembra as chamadas “ganhadeiras”, escravas e libertas que vendiam principalmente comida, mas também realizavam outros ofícios, como lavar e engomar. Essa última atividade foi uma das relatadas por Maria Izabel como um dos ofícios que desenvolveu na região de Itapagipe.

Pedido

O texto ressalta a compreensão de Maria Izabel sobre o quanto era valiosa uma fotografia publicada em jornal:

“Era a sua derradeira alegria ver a sua imagem estampada no jornal do povo”. (A TARDE 10/7/1923, capa).

Imagem ilustrativa da imagem A africana que queria uma foto sua tornou-se notícia de primeira página em A TARDE
Edição trouxe a história e fotografia de Maria Izabel || 10.7.1923

Dentre as muitas informações na reportagem, o doutor em antropologia Cláudio Luiz Pereira destaca o interesse que Maria Izabel demonstra pela fotografia. Na antropologia da imagem, uma das áreas de especialização de Pereira, é muito presente o discurso de aversão ao registro de imagens em determinados grupos culturais, como, por exemplo, poderia ocorrer entre as redes de africanos e seus descendentes na Salvador do início do século XX. Além disso, é um período em que pagar por uma fotografia não está ao alcance de parte considerável da população negra da capital baiana. Muitas das imagens de africanos e seus descendentes disponibilizados em postais e outros formatos são, geralmente, iniciativa de quem tem os recursos técnicos.

“Mas é Maria Izabel que vai à redação para se fotografar. Imagino a ideia que ela tinha sobre a fotografia, inclusive no sentido de eternizar-se. Talvez, ela soubesse ler, mas talvez nem soubesse, mas a imagem é outra forma de leitura e que não precisa explicar. A sua imagem ficou no jornal como um texto capaz de ser lido em vários sentidos, afinal estamos aqui refletindo sobre ele”, analisa Pereira.

Com a sua decisão, Maria Izabel se tornou notícia, conceito que, na teoria do jornalismo, supera o que é considerado comum ou previsível. É por isso que ela merece repercussão pública. É nessa identificação do que é notícia que se baseia o jornalismo, entendimento que, diante dessa tragédia chamada “fake news”, necessita ser defendido com ênfase. Se é falso ou boato, pois não há nenhum tipo de dado que comprove a veracidade da história, é mentira, um nome mais apropriado para enganação que tenta se disfarçar de notícia.

A história de Maria Izabel, portanto, é notícia de tal forma que mereceu ocupar um espaço na capa do jornal. E mais: após 98 anos, o texto e a imagem de Maria Izabel tornaram-se um precioso dado de memória, especialmente iconográfica, afinal imagens de mulheres negras com tantas informações biográficas em um jornal de grande circulação não são ocorrências corriqueiras. O texto, apesar de curto, apresenta uma personagem com uma trajetória impressionante.

Imagem ilustrativa da imagem A africana que queria uma foto sua tornou-se notícia de primeira página em A TARDE
Iconografia da obra de Johann Moritz Rugendas ||| 16.8.1994

Costa d’África

Segundo a reportagem, Maria Izabel veio para o Brasil ainda criança e em meio à tragédia da escravidão. Com a informação de que ela já era uma moça feita quando houve uma epidemia de cólera em Salvador, uma referência, talvez a que ocorreu na década de 1850, o autor do texto chega ao cálculo, mas sem dar informações mais precisas, que Maria Izabel tinha 106 anos. Por essa estimativa, ela nasceu, portanto, em 1817, ainda em território africano.

Durante a escravidão, de acordo com o texto, serviu a um certo Pedroso, em Capimirim, área da região de São Francisco do Conde, onde funcionaram alguns engenhos. Com a abolição, Maria Izabel foi morar no Cabula, na casa de um certo Simplício, que, ao que parece, virou o seu empregador. Foi casada com um homem chamado Nicácio, mas não tiveram filhos.

Ainda segundo o texto, Maria Izabel era conhecida como Vovó. Satisfeito o seu desejo de ser fotografada, despediu-se ainda a tempo de falar na sua língua de origem.

– “Qui ló fé?” – interroga ela...

– “O que quer dizer isso?”

– “O que ‘ocê’ quer mais?”

– Nada. Vá descançada que o seu retrato sahe na A TARDE”. (A TARDE, 10/7/1923, capa).

A expressão registrada em uma forma aportuguesada aproxima-se da palavra “Kilofe” em iorubá. Segundo o administrador Abdou Razak Mayodé Chabi, essa expressão pode ser traduzida para o português como uma pergunta que significa “o que você quer?”. Chabi é de etnia nagô, que tem o iorubá como idioma. Ele veio ao Brasil por meio de um programa de intercâmbio para estudantes de países africanos em universidades brasileiras e preside a Diáspora Beninense no Brasil e a Associação dos Estudantes PECG da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

A tradução apontada por Chabi articula-se com o que Maria Izabel pergunta ao repórter no sentido de saber se ele ainda quer mais alguma coisa. Ao ouvir que não, de acordo com a narrativa, ela se despede inclusive usando outras expressões em língua africana, o que reforça a interpretação de que há preservação das memórias de Maria Izabel ainda sobre o seu pertencimento étnico em meio a tudo que viveu na Bahia.

Reflexões

Qual seria para Maria Izabel a importância de ver sua imagem e história registrada em um jornal a ponto de levá-la a sair de Itapagipe ou do Cabula, pois não fica muito explícito qual era o seu endereço, para ir até o Comércio, onde, em 1923, estava a sede do jornal? Hoje o trajeto do Cabula ao Comércio dura cerca de 20 minutos, dependendo da rota e do meio de transporte escolhido. Já em relação a Itapagipe, tomando-se o Bonfim, dentre os bairros dessa região como referência, o trajeto tem uma média de 30 minutos. Em uma direção ou outra, o percurso de Maria Izabel, há 98 anos, não foi tão rápido ou fácil para chegar até a redação de A TARDE.

São perguntas que nos desafiam, mas ao mesmo tempo apresentam informações preciosas, afinal o retrato de uma mulher africana e centenária foi publicado em um jornal de grande circulação, como A TARDE estabelecendo a rara conexão com informações biográficas. Além disso não foi um desconhecido que “tomou” a sua imagem, mas esta foi feita a partir do seu desejo e anuência. Maria Izabel não foi procurada como notícia, mas se “fez” notícia. A sua voz não está silenciada, mas ressoou de forma que até parece que escuto o seu riso ao perceber nos textos repetidas expressões sobre a sua “graça” e “alegria”.

A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE.

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

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