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A TARDE conectou trajetórias das quiromantes Beatriz e Sardelina

Texto com equívoco sobre decisão da OMS revelou fonte que esteve relacionada a anúncio 41 anos antes

Publicado sábado, 14 de maio de 2022 às 06:08 h | Autor: Cleidiana Ramos
As duas disputaram mercado e foram o centro de polêmicas via imprensa
As duas disputaram mercado e foram o centro de polêmicas via imprensa -

Na edição de 23 de abril de 1979, A TARDE anunciou, por meio de uma reportagem, que a atividade de videntes e curandeiros teriam a partir de então o apoio da Organização Mundial de Saúde (OMS) para as suas práticas. Trata-se de um equívoco em relação a uma decisão do órgão de referência das Nações Unidas para questões de saúde. A decisão foi para alguns princípios como a defesa das chamadas práticas tradicionais, categoria em que se inclui, por exemplo, as rezadeiras brasileiras, na I Conferência Internacional sobre Cuidados Primários com a Saúde realizada em 1978, em Alma-Ata na então União das Repúblicas Russas Socialistas Soviéticas (URSS). Mas o texto permitiu uma conexão entre a iugoslava Sardelina Nicolit, que foi a única fonte entrevistada para a reportagem de 1979, e a autora de um anúncio veiculado em uma edição publicada 41 anos antes: a grega Madame Beatriz. As duas disputaram mercado e foram o centro de polêmicas via imprensa e de inquéritos das delegacias empenhadas no controle de costumes.

“É impressionante como uma referência que chega a ser um equívoco em relação a uma decisão da OMS nos leva a fazer uma conexão sobre a trajetória de duas quiromantes que conquistaram espaço na imprensa e se envolveram em polêmicas”, aponta o doutor em antropologia Cláudio Luiz Pereira. Analisando os dois conteúdos, Pereira encontrou a conexão entre o anúncio de 1938 e a reportagem de 1979. 

O antropólogo relata que Madame Beatriz chegou a desfrutar de muito prestígio em Recife, capital de Pernambuco. Segundo informações do site intitulado O Obscuro Fichário dos artistas Mundanos, os anúncios em que Madame Beatriz se apesentava como uma especialista em ciências ocultas já estavam circulando em 1934. Um ano depois ela começou a ser investigada pela Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) de Pernambuco. 

“Nas investigações policiais, questionava-se principalmente sua nacionalidade, bem como a de seu marido, Manoel ou Mivolrack Javanovitz. A cartomante informou ser grega, enquanto outros afirmavam ser ela sérvia”, diz trecho do espaço do site dedicado a Madame Beatriz, identificada como Beatriz Janovite (ou Janovitch) ou Emilia Tayirivitc. O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos é um projeto desenvolvido por Clarice Hoffmann com a colaboração de diversos pesquisadores. O projeto catalogou e digitalizou fichas de acompanhamento policial de pessoas que eram classificadas como “artistas” no período de 1934 a 1950 em Pernambuco. 

Três anos depois dessa investigação pela DOPS de Pernambuco ter começado, um anúncio sobre os serviços de Madame Beatriz em Salvador foi publicado em A TARDE.

“Já consultastes o occultismo, a chiromancia? Sabeis por accaso que estas sciencias vêm na noite dos tempos e que a ellas se têm consagrado imensos tratados! Ellas contêm a “chave da vida” que é o conhecimento das forças occultas que nos cercam e nos destroem! Ellas destroem essas forças maléficas e restituem ao homem a paz e a felicidade. Quereis uma prova? Ide a MADAME BEATRIZ a maior chiromante scientista que já pizou terras do Brasil, consagrada em toda a Europa e vereis a alegria e o bem estar vos serdes reconquistado. Ella acha-se a vossa disposição em seu rico e confortável gabinete”. (A TARDE, 6/1/1938, p.8)

Edição do Jornal A TARDE de 23 de abril de 1979
Edição do Jornal A TARDE de 23 de abril de 1979 |  Foto: Arquivo A TARDE
 

O endereço do gabinete de Madame Beatriz indicado no anúncio é o Largo da Sé, no Centro Histórico da cidade. O horário de atendimento era amplo: das 8 às 21 horas. “Esse anúncio indica que Madame Beatriz acabava de chegar a Salvador onde permaneceu como afamada vidente e quiromante até os anos 50. Foi em seguida para o Rio de Janeiro e depois retornou para Recife”, aponta Cláudio Luiz Pereira.

Em 1936, segundo o texto do site O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos, uma matéria do jornal Diário de Pernambuco publicou uma acusação contra uma vidente chamada Madame Savdelina que também publicava anúncios sobre os seus serviços. A reportagem a caracterizava como embusteira.    

Alguns dias depois, de acordo com o site, foi publicada uma reportagem com a defesa de Madame Savdelina. O texto acusava Madame Beatriz de ter feito as denúncias em uma campanha para difamar a sua rival.    

Embora a reportagem de A TARDE de 1979 use a grafia “Sardelina” há muitos indícios de que era ela a rival de Madame Beatriz na década de 1930. No texto baseado na entrevista concedida ao jornal A TARDE por Sardelina, 41 anos depois do anúncio de Madame Beatriz, ela diz que é natural de Belgrado e que chegou ao Brasil em 1933. Ela não faz menção a uma temporada em Recife, mas afirma que passou 30 anos morando em Fortaleza.  Para Salvador havia retornado há sete anos. 

Um outro ponto importante: seu cuidado em informar que possuía documentos que lhe autorizavam a realizar as práticas em que era especialista expedidos por secretarias de segurança pública de vários estados brasileiros. 

“A primeira atitude tomada por ela, ao receber a imprensa, foi de mostrar todos os documentos que possui, habilitando-a a exercer a quiromancia, cartomancia e trabalhos com bola de cristal, expedidos por secretarias estaduais de Segurança Pública de quase todas as cidades brasileiras, datadas de há muitos anos, inclusive um da Bolívia. Ela fez questão de mostrar tais documentos para deixar claro que não está fazendo nada ilegal”. (A TARDE, 23/4/1979, p.2). 

Há mudança também no título: já não é mais “madame”, mas professora. Além disso, como faziam as mulheres dedicadas a essa arte, Sardelina ressalta que pratica o que considera “magia branca”. Outra referência importante apontada por ela é a sua distância de temas relacionados à política. Ela afirma que tomou essa decisão após a morte do marido que também era médium. 

“Foi depois da morte dele que a professora Sardelina deixou de fazer previsões a respeito das perspectivas políticas e sociais. “Ele antes de ir me pediu”. Além do mais para se fazer tal trabalho é preciso a concentração de pelo menos umas três pessoas e minha cunhada, que me ajudava nestes casos, juntamente com meu marido, já morreu também”.  (A TARDE 23/4/1979, p.2). 

A previsão no âmbito político que Sardelina Nicolit apontou como a sua mais acertada foi a do início da Segunda Guerra Mundial. Já Madame Beatriz envolveu-se em uma polêmica política mais local. Ela previu que Antônio Carlos Magalhães, prefeito de Salvador durante a ditadura militar, não terminaria o mandato de 1967 a 1970 e que seria traído por adversários.  Essa profecia não se concretizou, mas ela acertou sobre as perdas americanas durante a Guerra do Vietnã. 

Outra polêmica em que Madame Beatriz esteve envolvida foi com o escritor Jorge Amado. Ela o acusou de tê-la usado como referência para compor uma das personagens de Pastores da Noite. A mobilização de Madame Beatriz não gerou tanta publicidade quando comparada àquela que envolveu Jorge Amado e Jubiabá, pai de santo que disse ser a inspiração do romance homônimo do escritor. Em relação a Madame Beatriz, Jorge Amado se manteve em silêncio.  

Por esse trânsito em assuntos relacionados ao poder com tantas turbulências nas mais variadas fases da República essas videntes tornavam-se, portanto, alvo de autoridades, mas também ganhavam espaço na comunicação de massa tanto no âmbito do jornalismo como do entretenimento. 

“Imaginemos que em política não há preço para uma possibilidade de saber sobre o futuro. Não surpreende, portanto, esse interesse das polícias de costume pela trajetória dessas mulheres. É também compreensível, com esse tipo de proposta, a sua facilidade para transitar por ambientes de elite, de onde tiravam parte da sua clientela. Madame Beatriz, por exemplo, tinha um gabinete luxuoso em Recife, como aparenta que fez o mesmo em Salvador levando-se em conta detalhes do seu anúncio de 1938. Quando foi acusada pela DOPS em Pernambuco contou com o depoimento de bom comportamento disponibilizado por cerca de 20 vizinhos”, conta o antropólogo Cláudio Luiz Pereira. 

Mais uma vez, portanto, temos uma amostra de como os jornais são capazes de fazer uma conexão entre o presente e um passado relacionado a ele. Não é exatamente previsão do futuro, mas a mágica eficiente do registro dia a dia do cotidiano.    

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. 

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