A TARDE registrou visita de liderança das igrejas protestantes | A TARDE
Atarde > Colunistas > A Tarde Memória

A TARDE registrou visita de liderança das igrejas protestantes

Reportagem publicada em 1920 contou a história da comitiva que estava interessada por temas como agricultura

Publicado sábado, 30 de abril de 2022 às 06:03 h | Autor: Cleidiana Ramos* | [email protected]
Igrejas protestantes negras surgidas nos EUA n século XVIII tiveram um importante papel no combate ao racismo
Igrejas protestantes negras surgidas nos EUA n século XVIII tiveram um importante papel no combate ao racismo -

É atribuída a Eugênia Anna dos Santos, Mãe Aninha, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá, a caracterização de Salvador como uma “Roma Negra”. Analisando o que foi a sede do expansionista e colonialista império que impunha a convivência de diversas culturas, Salvador, de fato, foi um dos mais importantes centros de diáspora da África Negra por conta da tragédia da escravidão. Isso fez a capital baiana estar no centro de interesse dos visitantes negros de outras culturas, especialmente no âmbito religioso e não apenas das religiões que dialogam com os cultos tradicionais africanos. A edição de A TARDE de 17 de agosto de 1920, por exemplo, registrou a visita de um grupo de membros de igrejas do movimento afro-americano.  

A reportagem de A TARDE encontrou o grupo passeando e registrando imagens de pontos da cidade. Em entrevista, o líder da comitiva, apresentou-se como o bispo George C. Clement, da Igreja de Louisville, do estado de Kentucky.  Os outros integrantes eram o professor J.W. Martin, secretário da igreja; as professoras do sistema público na Georgia, Cora B. Hinley e Marie Hill Atlanta; o reverendo A. A. Crook, de Nova Iorque; e J.A. Robinson, J. C. Arnold, G.O. Cragmanu e S. Tyalor, reverendos de Atlanta. 

A comitiva estava de férias e decidiu visitar cidades brasileiras, mas em uma interação maior do que apenas turismo. A viagem começou pelo Rio de Janeiro. O objetivo, segundo o bispo George Clement era estudar agricultura e também elementos das missões cristãs no país. A reportagem foi acompanhada de um clichê retratando o grupo. Na imagem eles posam com o que aparenta ser uma bandeira dos EUA. 

“Demoram-se ainda alguns dias e seguem para Pernambuco; daí para Barbados, Hawana e New York”. (A TARDE, 17/8/1920, capa). 

Capa do A TARDE destacou visita
Capa do A TARDE destacou visita |  Foto: CEDOC A TARDE | 17.8.1920
 

Interação

“Algumas das pessoas citadas na reportagem foram importantes lideranças do protestantismo negro dos Estados Unidos. O reverendo George C. Clement foi bispo de uma igreja negra em Kentucky e liderança do segmento protestante African Methodist Episcopal Zion, conhecido como AME Zion”, explica a professora Rachel Harding, PhD em História pela University of Colorado Boulder e professora associada do Departamento de Estudos Étnicos da University of Colorado Denver. O título de bispo utilizado por   George Clement mostra a sua importância para além da condição de líder de uma igreja. “Isso quer dizer que, além da sua singular igreja no estado de Kentucky ele foi líder regional de várias outras igrejas da confissão AMEZ”, destaca Rachel Harding.  

De acordo com a professora, que é também escritora e pesquisadora especializada em história da religião e cultura afro-atlântica, o AME Zion  foi um segmento fundado por negros norte- americanos a partir do final do século XVIII. “Os fundadores saíram de um segmento metodista liderado por brancos por causa de discriminação racial e maus tratos. Um exemplo: os negros eram obrigados a sentar nos fundos das igrejas ou nos balcões, afastados dos brancos. Também eram proibidos de entrar na igreja para celebrar o culto; pessoas negras não podiam ter cargos de liderança nas igrejas”, conta Rachel Harding. 

Como insurgência ao racismo surgiu o segmento mais amplo denominado The African Methodist Episcopal Zion Church, que em uma tradução mais livre para o português significa Igreja Metodista Episcopal Africana de Sião. Além das batalhas contra a discriminação e segregação racial em seu país, o movimento passou a ter atividades para além dele. 

“O African Methodist Episcopal Zion foi talvez o segmento protestante afro-norte-americano que mais criou conexões diaspóricas através do trabalho missionário. Acredito que posso afirmar que o cristianismo, seja protestante ou católico, tem fornecido estruturas de legitimação justamente por ser tão fortemente interligado com o colonialismo e imperialismo que, no mundo inteiro, várias comunidades de descendência africana acabaram por aproveitar”, acrescenta Rachel Harding. 

A pesquisadora disse que não tinha informações sobre visitas a Salvador por integrantes do movimento protestante afro-americano antes de conferir a reportagem de A TARDE. De acordo com ela, são mais comuns as informações sobre a atuação dos missionários das igrejas negras dos EUA em países da África, como Libéria e Serra Leoa ainda durante a fase do colonialismo. 

Diversidade

Do final do século XVIII até as primeiras décadas do século XX, de acordo com Rachel Harding, ocorreu o surgimento de diversos segmentos ou denominações protestantes nos Estados Unidos, além de igrejas individuais associadas aos movimentos de combate ao racismo. “Todos tinham o fim de permitir que as mulheres negras e homens negros tivessem espaço, tanto do ponto de vista físico como psíquico para cultuar o sagrado do seu jeito e liderar instituições sem passar por humilhações racistas”, acrescenta a pesquisadora.  

No âmbito desses movimentos surgiram também instituições educacionais e outras vias para  o protagonismo na liderança de membros das comunidades negras.  “As igrejas protestantes negras foram instituições que passaram a ter a liderança de membros da comunidade negra na época do pós-abolição e depois na época da segregação nos EUA. Além das igrejas também tinham as   instituições educacionais e as famílias negras que eram e ainda são as grandes instituições da comunidade negra”, acrescenta Rachel Harding. 

Além do AMEZ, Rachel Harding lista outros segmentos protestantes fundados por negros nos EUA:  African Methodist Episcopal Church (Igreja Episcopal Metodista Africana ou AME); Igreja Metodista Episcopal de Gente de Cor (Colored Methodist Episcopal Church ou CME, que mais tarde transformou-se na Igreja Metodista Episcopal Cristã); Church of God in Christ (Igreja de Deus em Cristo ou Cogic), além de vários segmentos batistas e de outros grupos menores.      

O grupo que visitou Salvador e tinha intenção de seguir para Pernambuco também havia passado por Manaus. Essas interações, portanto, demonstram o quanto os espaços religiosos tornaram-se, por conta das consequências do colonialismo e do racismo, organizações com potencialidades para seguir além da experiência religiosa.

Mais do que instituições formais, igrejas negras nos EUA, irmandades negras católicas no Brasil, além de comunidades das religiões afro-brasileiras fizeram e fazem da prática religiosa um movimento de cidadania emancipatória. No caso de Salvador, por exemplo, líderes desse grupo estão em muitos lugares ao mesmo tempo e desenvolvem importantes atividades nas disputas por protagonismo e enfrentamento ao racismo em campos como o Carnaval, o futebol, as universidades, dentre outros.  Histórias como essa contada por A TARDE há mais de cem anos dão pistas para compreender essas conexões também nos caminhos da diáspora africana pelas Américas.  

A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDECedoc A TARDE. Confira mais conteúdo de A TARDE Memória, no Portal A TARDE, e em A TARDE FM.

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia

Publicações relacionadas