Bom Jesus e Reis vão retomar o calendário das festas de verão | A TARDE
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Bom Jesus e Reis vão retomar o calendário das festas de verão

Ciclo que teve uma pausa a partir de Santa Luzia recomeça com a celebração do embarque na Boa Viagem

Publicado sábado, 16 de dezembro de 2023 às 06:20 h | Autor: Cleidiana Ramos
O largo e os ritos religiosos ajudaram a Festa de Bom Jesus dos Navegantes a persistir
O largo e os ritos religiosos ajudaram a Festa de Bom Jesus dos Navegantes a persistir -

O ciclo das festas de verão em Salvador tem uma pausa depois de Santa Luzia. É um período em que há maior visibilidade para as celebrações natalinas. Mas as comemorações de largo vão retornar antes do ano acabar, com as homenagens a Bom Jesus dos Navegantes e em seguida tem a Festa de Reis.  Essas duas comemorações também marcam um deslocamento do eixo de celebrações da região do Centro Histórico e Comércio para a Cidade Baixa e Lapinha. São festas hoje mais restritas aos locais onde estão sediadas, mas que resistem mantendo seus elementos principais: procissão marítima, no caso do Bom Jesus, e desfile de ternos. 

A procissão de Bom Jesus dos Navegantes é uma das mais antigas festas de Salvador. Como a procissão de embarque na Boa Viagem acontece no dia 31 de janeiro, durante décadas essa era a região de maior visibilidade na celebração do Ano Novo na capital baiana. A festa começava em meio às barracas montadas no entorno da igreja e se prolongava no dia seguinte nas embarcações que ainda hoje acompanham a Galeota Gratidão do Povo onde segue a imagem de Bom Jesus dos Navegantes. 

O largo e os ritos religiosos ajudaram a Festa de Bom Jesus dos Navegantes a persistir
O largo e os ritos religiosos ajudaram a Festa de Bom Jesus dos Navegantes a persistir |  Foto: Data: 16/12/1979 | Cedoc A TARDE
  

No ranking de citações em conteúdo para o jornal A TARDE elaborado na pesquisa que resultou na minha tese intitulada Festa de Verão em Salvador- um estudo antropológico a partir do acervo documental do jornal A  Tarde, orientada pela professora Fátima Tavares, a Festa de Bom Jesus dos Navegantes é a quarta em ocorrências, com 7,70% de 6.992 PDFs analisados. Em seguida vem a Festa de Reis com 6,10% de citações no conjunto. 

As duas festas têm algumas características comuns na análise dos discursos sobre elas nas reportagens de A TARDE: são reivindicadas como espaços de preservação de tradição por conta de sua antiguidade nos registros de prática religiosa na cidade. Ambas também são parecidas na pouca interação com o afro catolicismo, ou seja, sem conexões fortes entre santos e divindades das religiões afro-brasileiras. 

O largo e os ritos religiosos ajudaram a Festa de Bom Jesus dos Navegantes a persistir
O largo e os ritos religiosos ajudaram a Festa de Bom Jesus dos Navegantes a persistir |  Foto: Data: 1/01/1987 | Cedoc A TARDE
  

Largo no mar

No dia 31 de janeiro, após uma missa à tarde na Igreja da Boa Viagem, a imagem de Bom Jesus dos Navegantes é levada até o cais com a companhia da representação de Nossa Senhora da Boa Viagem. Embarcada na Galeota Gratidão do Povo, ela segue até o Comércio para o pernoite na Igreja de Nossa Senhora da Conceição. 

No dia seguinte, acompanhada pela imagem de Nossa Senhora da Conceição, a representação do Bom Jesus segue para um novo embarque. A procissão marítima vai do Comércio até a Barra e de lá faz um retorno em direção à Boa Viagem. Lá chegando, o Bom Jesus é recebido pela imagem de Nossa Senhora da Boa Viagem para o retorno à igreja. 

O largo e os ritos religiosos ajudaram a Festa de Bom Jesus dos Navegantes a persistir
O largo e os ritos religiosos ajudaram a Festa de Bom Jesus dos Navegantes a persistir |  Foto: Data: 1/1/1987 | Cedoc A TARDE
  

A primeira referência à festa, uma devoção surgida no século XVIII, em reportagens de A TARDE é de 1916. O destaque sempre esteve no principal rito da festa: a procissão marítima. A Galeota Gratidão do Povo foi doada pelo carpinteiro João Francisco, em 1892, após um episódio em que a Marinha se negou a fornecer um meio de transporte alegando a laicidade do Estado por conta da Proclamação da República. Essa história foi contada na edição de A TADE de 20 de dezembro de 1941. 

Na pesquisa nas coleções de A TARDE encontrei apenas um relato de incidente com a embarcação na edição de 3 de janeiro de 1972. 

O largo e os ritos religiosos ajudaram a Festa de Bom Jesus dos Navegantes a persistir
O largo e os ritos religiosos ajudaram a Festa de Bom Jesus dos Navegantes a persistir |  Foto: Data: 21/12/1980 | Cedoc A TARDE
  

“Sob um sol forte intenso, a galeota de Nosso Senhor dos Navegantes afundou, parcialmente, por volta das 13 horas do dia 1º, quando o seu casco foi atingido por um foguete lançado da praia. A imagem não precisou ser transferida para outra embarcação, pois um rebocador trouxe a galeota até a praia. Esta é a primeira vez, em 18 anos, que ocorre um acidente com a galeota durante a procissão de Nosso Senhor dos Navegantes”. (A TARDE, 3/1/1972, capa). 

A galeota acompanhada por dezenas de embarcações é uma das mais bonitas imagens que as festas de Salvador proporcionam. E quem já teve a experiência de participar dessa procissão consegue perceber rapidamente que o mar acaba repetindo o largo. O que predomina nas embarcações que seguem a galeota são as mais variadas formas de comemorações e trilhas sonoras em uma mistura de extensão do Réveillon com aquecimento para o passeio em direção às ilhas que é a programação de muita gente no dia 1º.

Essa característica desagradou o então arcebispo de Salvador, dom Lucas Moreira Neves, segundo uma reportagem de A TARDE de 2 de janeiro de 1988. Ele não embarcou na galeota desaprovando as características do entorno da procissão marítima.  

“Destacou o arcebispo que era seu dever, como pastor da igreja, impedir que os outros elementos prejudicassem, maculassem a fé religiosa, prometendo agir com prudência na defesa da devoção do povo baiano”. (A TARDE, 2/1/1988, p.3).   

Esse episódio foi mais uma demonstração de um embate muito comum, da década de 1970 até o início dos anos 2000, relacionado ao modelo que determinados agentes, inclusive parte do governo da arquidiocese, considerava para as festas de largo. O principal objetivo era controlar sobretudo as festas nas barracas. Este modelo prosperou em algumas festas o que as fez, inclusive, perder a sua visibilidade na cidade, especialmente a Conceição da Praia, mas sobrevive e dá novas dinâmicas a outras comemorações como Bonfim e Iemanjá. 

Revelação

A Lapinha, localizada na região da Grande Liberdade, se tornou o principal palco de um dos elementos presentes em várias das festas de verão de Salvador: o desfile dos ternos. Eles, os ranchos e os bailes pastoris faziam parte das celebrações a partir do Natal em pontos considerados de veraneio da cidade, como Itapagipe, Rio Vermelho, dentre outros locais. Os clubes, como o Fantoches, também recebiam os ternos.  

“Continuam a despertar grande animação os ensaios do Terno das Camponezas, realizados quase todas as noites na sede dos Fantoches, sob a orientação das legionarias e de alguns diretores do club”. (A TARDE, 3/1/1939, p.2). 

Em 1942, a Festa de Reis ganhou um presente muito especial: um show de Dorival Caymmi, que já estava com o status de estrela da música brasileira. O músico fez duas apresentações em Salvador: uma na Praça da Sé e outra na Lapinha. Foi, talvez, a primeira vez que o show de um artista integrou a programação de uma das festas de largo de verão em Salvador. A expectativa em dias anteriores já era alta, conforme registro em A TARDE:  

“Basta lembrar que as suas canções, uma após outras, são a “great attration” dos Cassinos cariocas, onde a alta sociedade disputa os lugares nas “premières”, a peso de ouro. Não é Dorival o arquiteto da fama de Carmen Miranda, que está se enchendo de dinheiro nos “night-clubes” dos Estados Unidos? Louvemos, pois, como um ato muito feliz do prefeito Neves da Rocha, a resolução que acaba de tomar, promovendo em conjunção com a P.R.A-4, a apresentação do famoso cancioneiro bahiano em duas audições públicas nas quais, de certo, muitos milhares de patrícios irmão aclamá-lo”. (A TARDE, 30/12/1941, p.2). 

Desfile de Ternos é a principal característica da Festa de Reis
Desfile de Ternos é a principal característica da Festa de Reis |  Foto: Data: 06/12/1981 | Cedoc A TARDE
  

Mas foi, sobretudo, a atuação do padre José Pinto (1947-2019), titular da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição da Lapinha, a partir do final da década de 1970, que deu um novo impulso ao principal endereço do desfile dos ternos em Salvador. Na Lapinha, essa manifestação ganhou força para ir resistindo ao longo do tempo e ao discurso antigo de que iriam sucumbir. 

Padre Pinto, que era artista plástico, organizou, inclusive um terno da própria paróquia: o da Anunciação. Mesmo com a polêmica que o envolveu na edição da festa de 2006, quando desfilou com uma fantasia de homenagem a um orixá, e que resultou no seu afastamento da paróquia, ainda hoje a memória da sua contribuição para a resistência da festa persiste. 

Desfile de Ternos é a principal característica da Festa de Reis
Desfile de Ternos é a principal característica da Festa de Reis |  Foto: Data: 05/01/1984 | Cedoc A TARDE
  

Os ternos, segundo Câmara Cascudo (1898-1986), são uma herança europeia, sobretudo de Portugal. Seus integrantes usam fantasias, dançam, cantam e tem os chamados reis magos como personagens principais. A manifestação encena os fatos relacionados ao nascimento de Jesus. Na liturgia católica a festa se chama epifania, ou seja, revelação e ocorre no dia 6 de janeiro. Ela celebra a apresentação de Jesus ao mundo, pois cada rei mago representa um continente dentre os conhecidos naquela época.  

Na Lapinha, a missa do dia 5 de janeiro é seguida pela apresentação de ternos de Salvador e de outras cidades. Eles são uma amostra da resistência de manifestações que conseguiram se garantir no ambiente extremamente dinâmico das celebrações de verão na capital baiana. 

Artista plástico, o padre José Pinto impulsionou as manifestações culturais na Festa da Lapinha
Artista plástico, o padre José Pinto impulsionou as manifestações culturais na Festa da Lapinha |  Foto: Data: 04/01/1996. Foto: Paulo Munhoz | Cedoc A TARDE
  

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Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

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