Em agosto de 1954, A TARDE acompanhou detalhes da comoção pela morte de Getúlio | A TARDE
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Em agosto de 1954, A TARDE acompanhou detalhes da comoção pela morte de Getúlio

Publicado sábado, 21 de agosto de 2021 às 06:01 h | Autor: Cleidiana Ramos*
O presidente Getúlio Vargas durante um de seus famosos discursos | Foto: Cedoc A TARDE
O presidente Getúlio Vargas durante um de seus famosos discursos | Foto: Cedoc A TARDE -

Quando ministro disciplinas sobre a entrada do Brasil na era moderna ou de temas relacionados ao contexto mais contemporâneo, costumo apontar Getúlio Vargas como um governante que entendeu como poucos o país em que vivia e para o qual tinha o seu projeto pessoal de poder. Diante da sua condição de um homem público que transitou entre tantos papéis – ditador, idealizador de um discurso de “brasilidade”, proprietário de terras, mas amado por camadas médias de trabalhadores urbanos e articulista hábil –, esquecemos o componente humano e extremamente trágico da sua morte e o quanto de solidão ele deve ter vivido nos seus últimos momentos. Mas tratamos o seu suicídio como mais um lance do habilidoso político que Vargas foi. Talvez ainda pensemos pouco se foi mesmo um ato calculado e, portanto, pragmático, ou apenas a fragilidade de um homem. É que nos acostumamos a imaginar Getúlio como um boxeador da política que usou contra si próprio o nocaute e alcançou vitória. O tiro no peito fez Getúlio virar a história a seu favor e tornou o dia 24 de agosto de 1954 em uma sombra que nos faz pensar como este país foi e continua complexo.

A edição de A TARDE de 25 de agosto de 1954 deu como manchete o texto que tenta traduzir a comoção gerada pela morte do então presidente: “200 mil no enterro do sr. Getúlio Vargas”. A cobertura nessa e em edições seguintes vão desenrolando a teia de intrigas que levou Vargas a desistir da vida, mas ainda no poder.

“Sua morte, em circunstâncias tão trágicas, deve conduzir ao desarmamento dos espíritos e as manifestações que se sucedem, pranteando o seu dramático gesto, são unanimes em respingar da soma dos episódios que formam a sua vida, as virtudes que inegavelmente possuía e as qualidades que o elevaram ao papel que desempenhou por um largo período da história republicana. A constante, porém, da sua existência, dentre tantos caminhos que a ação política lhe forçara a tomar, foi a sua paixão pela sorte dos humildes, cuja causa abraçou com uma férrea determinação, deixando-lhes um legado inestimável, consubstanciado na proteção que lhes é assegurada pela vigente legislação social, que marca uma verdadeira revolução no campo das relações entre empregados e empregadores não somente entre nós, como em todo o mundo”. (A TARDE, 25/8/1954, capa).

Até hoje Getúlio Vargas divide opiniões entre os que o consideram apenas um ditador populista que levou 15 anos no poder após golpes no movimento conhecido como Revolução de 1930 e o Estado Novo. Para estes, Getúlio não tem perdão, pois suprimiu liberdades e perseguiu inimigos políticos. Além disso há os traços de simpatia pelo nazifascismo que o levaram a entregar, sem hesitar, uma mulher grávida, Olga Benário, à polícia de Adolf Hitler. Alemã, de ascendência judia, Olga era casada com Luís Carlos Prestes e mais que isso: uma importante militante da Internacional Comunista. Ela morreu numa câmara de gás, mas sua filha, Anita Leocádia Prestes, foi entregue à avó paterna, Leocádia, após uma intensa campanha internacional.

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A Miss Bahia Marta Rocha visitou Getúlio no Palácio do Catete, no Rio | Foto: Cedoc A TARDE

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Getúlio foi também o entusiasta do que passamos a conhecer como trabalhismo. Suas ações em direção à emergente classe operária o fez ser tachado de populista pelos inimigos, mas abriu o caminho para ser festejado por setores de trabalhadores pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Em Iaçu, ainda menina, conheci ferroviários que faziam questão de manter um quadro em suas paredes como demonstração de admiração a Getúlio, retratado ainda jovem, mas com a faixa presidencial. Foi o seu aguçado tino político que o fez dizer, como afirmam as histórias em torno dele, que voltaria, após ser obrigado a renunciar em 1945, nos braços do povo.

Voltou mais ou menos dessa forma, afinal em 1950 foi eleito por voto direto. Mas o Brasil de então não era o mesmo do período que governou com mão de ferro. Os adversários de Vargas aprenderam as sutilezas de usar as próprias armas com as quais ele estava acostumado, como a comunicação social.

Os jornais, especialmente a Tribuna de Imprensa de Carlos Lacerda não deram trégua a Getúlio desde o início do seu governo. Com acusações de que chefiava esquemas de corrupção e um discurso cada vez mais virulento, Lacerda foi providencial ao jogo da oposicionista UDN. Em 1954 uma nova eleição presidencial estava marcada, o que aumentou a tensão. A entrada do Exército e da Marinha nos embates políticos pioraram totalmente o contexto político.

Em 5 de agosto, na Rua Toneleros, em Copacabana, Rio de Janeiro, dispararam tiros na direção de Carlos Lacerda. O jornalista foi atingido no pé, mas o major-aviador Rubens Florentino Vaz, que fazia a segurança de Lacerda morreu. O próprio Lacerda passou a afirmar que o atentado só tinha um suspeito: o presidente da República. As investigações, contestadas em alguns pontos, chegaram a Gregório Fortunato, membro da guarda pessoal de Vargas. Por fim, no dia 23 de agosto, militares assinaram um manifesto exigindo que o presidente deixasse o poder.

Mas a resposta de Getúlio veio de forma inesperada. No dia seguinte, o país acordou com a notícia de que ele resolveu deixar a presidência, mas com a marca de drama e de surpresa impressa em várias das suas ações: o suicídio e uma carta que as Forças Armadas tentaram classificar como falsa, segundo reportagem publicada na edição de A TARDE de 25 de agosto de 1954:

“O general Fernando de Saboia Bandeira de Melo, comandante da 6ª Região Militar, distribuiu à imprensa o texto do seguinte rádio, recebido do gal. Aristóteles de Souza Dantas, comandante da Zona Militar Norte: O Comando do 3º Distrito Naval foi informado pelo Estado Maior da Armada que a carta atribuída ao ex-Presidente da República é inteiramente apócrifa, visando somente a perturbação interna”. (A TARDE, 25/8/1954, p. 2).

A carta que fez os militares reagirem e que provocou controvérsias tem um conteúdo duro e com acusações muito precisas aos grupos adversários de Getúlio Vargas:

“A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário-mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. (...) Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida”. (Transcrição no portal da Câmara Federal).

O anúncio dos comandos militares sobre uma carta falsa não adiantou muito. A comoção tomou conta do Brasil de ponta a ponta. Homens e mulheres desmaiaram à medida que o cortejo fúnebre seguiu do Palácio do Catete para o embarque até o Rio Grande do Sul, terra natal de Vargas.

Antigos desafetos, como políticos baianos, já haviam selado a conciliação anteriormente. Ernesto Simões Filho, fundador de A TARDE, que foi ministro da Educação no segundo governo de Getúlio Vargas, ganhou saudações aos gritos de “Bahia, Bahia”, o estado que passou os 15 anos do mandato anterior do presidente morto sob intervenção federal. Simões Filho, inclusive, foi um dos mais fervorosos opositores ao governo provisório de Getúlio e à ditadura que se seguiu tendo a necessidade de viver em exílio na França durante algum tempo, além de ter seu jornal, A TARDE, invadido e empastelado.

“A Imprensa registra o episódio ocorrido no aeroporto, após o embarque do corpo do presidente Getúlio Vargas para São Borja. Quando o sr. Simões Filho regressava à sua residência foi reconhecido pelo povo que ergueu vivas à Bahia e bateu palmas, repetindo o nome desse Estado várias vezes. Populares seguraram e subiram no carro do ex-Ministro da Educação gritando que ‘os getulistas’ jamais poderão esquecer a lealdade, a dedicação e a compostura de Simões Filho. Foi um momento comovente de exaltação à velha fidelidade bahiana”. (A TARDE, 26/8/1954, capa).

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Edição registrou comoção no país | Foto: Arquivo A TARDE
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Tom emotivo continuou por dias | Foto: Arquivo A TARDE

Nas edições dos dias seguintes, A TARDE mostrou como o país estava, aos poucos, se acomodando: vice empossado, mas o clima continuaria tenso. Tanto que há quem insista que o suicídio de Getúlio Vargas apenas adiou por dez anos o golpe militar efetivado em 1º de abril de 1964 e a tenebrosa ditadura que se seguiu a ele. É bem pertinente a análise, afinal mexer nas regras que foram ajustadas de forma democrática nunca deu certo e determinados segmentos da política e da economia brasileiras deveriam ler mais um pouco sobre histórias como essas para ao menos conhecer os riscos.

A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE.

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia

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