Festas na orla atlântica encerram ciclo de verão
Rio Vermelho, Pituba e Itapuã ganharam projeção como local de veraneio
As festas da Pituba, Rio Vermelho e Itapuã, ocorridas nesta última semana, na região da chamada orla atlântica, encerraram o calendário de verão da cidade abrindo espaço para a chegada do Carnaval. Novas áreas de veraneio, sobretudo a partir do século XX, essas localidades passaram a sediar celebrações apontadas como o “grito de Carnaval”, ou seja, as preparações finais para a chegada da maior das comemorações da cidade. Outra característica marcante dessas festas, que têm registros nas edições desde os primeiros anos de circulação de A TARDE, era uma programação extensa de cerca de três meses começando logo após o Natal, afinal as pessoas chegavam a essas áreas para passar o ápice do verão.
No Rio Vermelho, as celebrações ocorriam no entorno das homenagens à padroeira do bairro: Nossa Senhora Sant´Anna. Na liturgia católica, Sant´Anna é festejada ao lado do marido, São Joaquim, em 26 de julho, mas no Rio Vermelho as homenagens aconteciam no período de verão. Na edição de 9 de fevereiro de 1920, a reportagem abordou uma série de eventos, com ocorrência maior a partir de janeiro: desfile de ranchos e ternos, apresentação de bandas em coretos, desfile de jangadas, banhos de mar à fantasia e apresentação do bando anunciador.
O bando ganhou muita projeção nas festas do bairro e era marcado pelo desfile dos participantes em carros decorados. O presente para a Mãe D´Água- a denominação Iemanjá passou a ser utilizada nas reportagens de A TARDE por volta de 1950- começou em meados da década de 1920, mas ainda sem destaque no jornal.
Antes das homenagens para Iemanjá ganharem o protagonismo- a Festa de Sant´Anna foi transferida na década de 1970 definitivamente para o seu dia litúrgico em julho- as comemorações do Rio Vermelho já tinham uma alta visibilidade. Na coleção de reportagens do Cedoc A TARDE, de 1912 a 2016, segundo a pesquisa que resultou na minha tese intitulada Festa de Verão em Salvador, as referências às celebrações no Rio Vermelho contabilizaram 752 ocorrências em textos. Isso representa um total de 10,7% das menções às festas em 6.992 arquivos de reportagens de A TARDE. É a segunda no ranking, atrás da Festa do Bonfim.
Já na coleção de imagens, a Festa do Rio Vermelho repete a mesma colocação. São 346 registros. É uma posição importante dada a distância, no período, que o Rio Vermelho estava em relação ao centro econômico da cidade. Uma referência interessante sobre a programação no Rio Vermelho é que nela estava mantida a lavagem do interior da igreja, mesmo com um decreto de 1889 assinado pelo arcebispo dom Luís Antônio dos Santos que se referia a todas as igrejas da cidade.
“Continuando uma das tantas tradições que constituem a vida festiva da Bahia, as moças do Rio Vermelho foram hoje num mixto de fé e alegria lavar a Igreja de Sant’Anna, o que constitue um dos mais pittorescos aspectos dessa festa popular. ( A TARDE, 2/2/1926, p.2).
Mas o destaque maior era para o Bando Anunciador, que ainda desfilou, segundo as reportagens de A TARDE, até o fim da década de 1960, na condição de aquecimento maior para o Carnaval.
“À tarde saiu o bando, composto de três carros alegóricos e dois caminhões, sendo um de “bahianas” e outro de “moleques”. [...] O carro principal representava a vitória das nações unidas, ostentando um grande V artisticamente ornamentado. Em frente ao V, via-se uma senhorinha trajando as cores da Bandeira Nacional e, nos quatro pontos do carro, elegantes moças trajadas com as cores dos pavilhões das nações unidas. (A TARDE, 7/2/1944, p.2).
A celebração era pelo iminente fim da Segunda Guerra Mundial. Mas é nesse período que o presente dos pescadores para Iemanjá já estava se sedimentando como uma grande celebração cultural da cidade com a sua defesa feita por diversos agentes especialmente os intelectuais que passaram a ter o candomblé como tema de pesquisas acadêmicas.
A Festa de Iemanjá ganhou projeção com uma maior incidência de ocorrências especialmente de 1993 a 2002. Nesse período ocorreram 153 citações na capa do jornal. São 20,3% das referências sobre a festa. Desse levantamento, em três situações a celebração foi manchete, ou seja, a notícia principal do jornal. Um dos destaques é a marca de público na manchete da edição de 3 de fevereiro de 1990: 100 mil pessoas participando da festa.
Persistência
Embora as atenções sejam direcionadas para Iemanjá, no bairro vizinho, na Pituba, em 2 de fevereiro, continua a ocorrer a festa para Nossa Senhora da Luz. Com a retirada da lavagem das escadarias da igreja a partir da segunda metade da década de 1980, muita gente pensa que a comemoração acabou, mas ela segue firme, embora com ênfase nos ritos católicos: missas e procissões. Uma das mais bonitas é a celebração na praia, às 5 horas, que costuma contar com a participação dos pescadores da colônia local.
A festa é antiga. A primeira referência de A TARDE sobre ela é de 1918. A celebração era resultado de uma aliança entre veranistas e as comunidades de pescadores, inclusive os de Amaralina. Além dos ritos católicos, havia outras atividades como a corrida de jangadas, banhos de mar à fantasia, bando anunciador, corrida de bicicleta e a lavagem das escadarias da igreja.
Com a rápida urbanização da Pituba a partir do início da década de 1980 e a construção de prédios especialmente por conta da chegada do Polo Petroquímico, a lavagem começou a ser desmobilizada. Já havia tentativas de transferência do evento da Praça Nossa Senhora da Luz, onde fica a igreja, para o Jardim dos Namorados desde a década anterior conforme foi anunciado pelo jornal.
“Não há qualquer fundamento na notícia segundo a qual eu havia determinado que a Festa da Pituba seria realizada no Jardim dos Namorados. Não vou contribuir para empanar o brilho de uma das mais animadas festas populares da Bahia. A declaração é do Prefeito Clériston Andrade desfazendo os rumores sobre a mudança do local da festa e que partiram não se sabe de quem. (A TARDE, 4/12/1973, p.3).
Em 1986, a lavagem ocorreu de forma esvaziada.
“Triste fim o da Lavagem da Pituba, que foi, até dois anos atrás, uma das mais concorridas do ciclo de festas populares de Salvador. O cortejo da “lavagem” chegou ontem às escadarias da Igreja Nossa Senhora da Luz quase ao meio-dia, puxado por quatro solitárias “baianas”, igual número de cavaleiros e não mais do que 100 acompanhantes, muitos dos quais portando cartazes de protesto contra a transferência das barracas para a área do Jardim dos Namorados, ocorrida desde o ano passado. (A TARDE, 31/1/1986, p.3).
Com a mudança das barracas para o Jardim dos Namorados, a lavagem acabou. Os moradores ainda tentaram uma reedição em 1996. Não deu certo. Com a nova data da celebração católica em 2 de fevereiro, a festa ficou ofuscada por ser o mesmo dia da comemoração para Iemanjá no bairro vizinho, o Rio Vermelho.
Articulação
Já os moradores de Itapuã conseguiram revitalizar a comemoração do bairro, mesmo com a transferência da festa da padroeira, Nossa Senhora da Conceição, para o dia litúrgico, 8 de dezembro. Como no Rio Vermelho, a programação foi ganhando novos elementos. Um deles foi o retorno do bando anunciador e as lavagens. No passado, a festa teve também banho de mar à fantasia, ranchos e ternos.
A articulação dos moradores do bairro em sua defesa foi fundamental para a revitalização. Recentemente, um movimento liderado pela enfermeira Eunice Gomes de Souza, conhecida como dona Niçu, deu um novo impulso à festa com o retorno do Bando Anunciador. Com ocorrência nas primeiras horas da madrugada, o desfile percorre as ruas do bairro e culmina com a lavagem das escadarias da igreja realizada por moradores que depois seguem para um café da manhã. O rito continuou mesmo com a morte de dona Niçu.
No meio da manhã acontece uma nova lavagem com a participação das baianas e outras atrações. A festa de Itapuã, geralmente, encera o ciclo de verão, pois é realizada na última quinta-feira antes do Carnaval. Esse ano, por conta de o Carnaval acontecer no início de fevereiro, ela foi a penúltima festa, ocorrida um dia antes da celebração para Iemanjá. Esta foi realizada ontem, o quem demonstra o quanto o Carnaval é um marco zero do calendário festivo, que será o tema da próxima edição.
Confira as páginas de A TARDE sobre as festas:
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia