REDES SOCIAIS
Caso Hytalo Santos expõe rede de adultização infantil na internet
Investigações revelam conteúdos sexualizados com menores e pressionam por novas leis
Por Edvaldo Sales e Victoria Isabel

O debate sobre a adultização e a exploração de menores em ambientes digitais tomou grandes proporções nos últimos dias após a repercussão do caso Hytalo Santos, que está sob investigação do Ministério Público da Paraíba (MPPB). Iniciada em 2024 após denúncias via Disque 100, a apuração busca verificar se os vídeos produzidos pelo influenciador ferem o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ao expor jovens a situações com teor possivelmente sexualizado.
No último dia 6, o youtuber e humorista, Felipe Bressanim Pereira, mais conhecido como Felca, lançou um vídeo denunciando a exploração de menores na produção de conteúdo online. Hytalo foi citado em uma das acusações como alguém que cria e reproduz materiais que envolvem menores de idade diante das câmeras.
O tema acendeu uma luz vermelha e tem gerado movimentações importantes de nível municipal a federal, com o surgimento de projetos de lei, possibilidade de regulamentação para as redes sociais e outras ações.
Por que adultização?

A reportagem do Portal A TARDE conversou com a advogada em Direito Digital, Alessandra Tanure, especializada na proteção de direitos de personalidade de crianças e adolescentes, para entender porque o caso se caracteriza como adultização.
Segundo Tanure, a adultização infantil ocorre quando crianças ou adolescentes são expostos a comportamentos, práticas e responsabilidades típicas do universo adulto, seja no mundo físico ou nas redes sociais.
“Essa exposição inclui a produção de conteúdos ou a adoção de posturas que não condizem com a infância, abrangendo desde a erotização precoce até a exploração monetária da imagem do menor, além de situações vexatórias ou constrangedoras”, explica Alessandra.
Para a especialista, no contexto digital, a adultização pode se manifestar na superexposição da intimidade de crianças, em um momento em que seu cérebro ainda não possui mecanismos de defesa suficientes para lidar com os riscos dessa visibilidade.
Em muitos casos, essa prática coloca o menor em situações que comprometem seu bem-estar, sua segurança e seu desenvolvimento saudável.
Emancipação e a possibilidade de isenção
Envolvida na polêmica, a influenciadora Kamylla Santos foi emancipada aos 16 anos, levantando questionamentos sobre se isso poderia isentar Hytalo Santos das acusações. Segundo a advogada, a emancipação é o ato que concede a um menor de idade, entre 16 e 18 anos, capacidade civil plena, permitindo que ele realize todos os atos da vida civil, como assinar contratos, comprar e vender bens, entre outros.
Contudo, segundo ela, apesar de a emancipação conferir autonomia para algumas decisões, como casar ou realizar procedimentos estéticos, o adolescente emancipado ainda está sujeito a restrições legais, como a proibição de consumo de bebidas alcoólicas ou de dirigir.
“Importante destacar que a emancipação não impede que a produção ou divulgação de conteúdo sexualizado envolvendo esse menor configure crime. Porque, para fins de proteção penal, tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) quanto o Código Penal consideram vulnerável qualquer pessoa menor de 18 anos, independentemente da emancipação civil. Ou seja, a emancipação altera a capacidade civil, mas não a idade penal de proteção contra crimes sexuais”, esclareceu.
Conforme Alessandra, a proteção de crianças e adolescentes é uma responsabilidade compartilhada entre o Estado, a família e a sociedade, incluindo empresas, conforme estabelece o ECA.
Caso as denúncias sejam confirmadas, os investigados poderão responder pelos crimes previstos no ECA, além de sanções previstas no Código Penal e no Código Civil.
Responsabilidade das redes sociais

Em junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que as redes sociais são responsáveis pelas postagens feitas por seus usuários. A Corte declarou parcialmente inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil da Internet, que até então exigia decisão judicial para a remoção de conteúdos considerados ofensivos.
“Com essa decisão, as plataformas passam a ser obrigadas a retirar conteúdos ilegais, como racismo, terrorismo e divulgação de pornografia infantil, mesmo sem ordem judicial, em casos graves”, explica a advogada.
Exposição com finalidade de lucro
De acordo com a advogada, existem diferenças importantes no tratamento legal quando a exposição de crianças ou adolescentes ocorre com finalidade de lucro ou para engajamento digital.
“Quando há objetivo de ganho econômico, a conduta tende a ser enquadrada de forma mais grave, por apresentar maior potencial de dano, receber resposta punitiva mais severa e ter maior probabilidade de caracterizar corrupção de menores para fins de exploração”.
Mesmo sem lucro imediato, a exposição de menores já configura crime ou infração. No entanto, a existência de benefício econômico pode agravar a interpretação sobre o dolo e a finalidade, influenciando a dosimetria da pena e a caracterização de participação ou cooperação.
A advogada reforça que, independentemente de lucro, a proteção integral da criança é a regra central. “O consentimento da criança não exonera a ilicitude, e a Justiça tende a tratar com rigor casos de exploração, independentemente da motivação financeira”.
Como agir ao identificar o crime nas redes sociais:
- Reúna evidências que mostrem não apenas a divulgação, mas também indícios de lucro (ganhos com anúncios, assinaturas, patrocínios ou links de monetização);
- Informe-se sobre medidas de proteção imediata, como remoção de conteúdo, suspensão de contas e suporte à criança;
- Procure orientação de um advogado especializado em direito digital e proteção de dados para identificar os crimes aplicáveis e possíveis agravantes;
- Caso haja plataformas envolvidas, envie pedidos formais de remoção e utilize os canais de denúncia. Muitas empresas têm políticas específicas para conteúdo envolvendo menores e podem colaborar com as investigações.
Impactos psicológicos

À reportagem, a psicanalista Ana Chaves afirmou que adultização e exploração de menores em seus conteúdos online, especialmente com conotação sexualizada, podem impactar de forma profunda e negativa no desenvolvimento psíquico das vítimas. “Do ponto de vista da psique, a criança está em formação da sua identidade, construindo sua noção de si e do mundo a partir de experiências simbólicas adequadas para cada idade”, enfatiza.
Segundo a profissional, a exposição precoce a códigos e expectativas adultas pode gerar:
- Confusão psíquica;
- Internalização de padrões de comportamento que ela ainda não tem maturidade para compreender;
- culpa ou vergonha.
“Quando a gente vê numa visão neurocientífica, sabemos que a área do cérebro responsável por tomada de decisão e regulação emocional, como o córtex pré-frontal, ainda está em pleno desenvolvimento até o início da vida adulta. E a exposição precoce a estímulos sexualizados que pode gerar hiper ativação do sistema de recompensa, alterar a percepção de limites e favorecer comportamentos de risco”, destaca a psicanalista.
Ana Chaves pontua que, na visão da psique humana, existe uma alerta e preocupação com o movimento cada vez mais recorrente de exposição de menores em redes sociais. A psicanalista destacou que o Conselho Federal de Psicologia e a Sociedade Brasileira de Pediatria têm reforçado que essa exposição deve ser feita com responsabilidade e com proteção da imagem e intimidade.
“A gente tem um fenômeno chamado sharenting, que são pais compartilhando excessivamente a vida dos filhos online e da monetização da imagem infantil, que levanta discussões éticas e clínicas. Porque pode trazer risco de indevida e perda de privacidade, a criação de uma identidade pública precoce que não foi escolhida por essa criança e o impacto na autonomia que pode ficar dependente de curtidas, comentários e validações externas”, ressalta.
No que tange ao desenvolvimento, a psicologia defende que a infância precisa de tempo e espaço protegidos, pois essa etapa é essencial para a construção da segurança emocional dessa criança.
Pais e responsáveis podem ser responsabilizados?
Em 2023, o baiano Vinicius Oliveira Santos, conhecido como Boca de 09, hoje com 17 anos, foi parar nos assuntos mais comentados do Twitter (atual X), porque os internautas cobraram um posicionamento do Ministério Público e a presença dos pais após o influencer aparecer em um vídeo com um pênis de borracha na mão e depois tocando o órgão genital de um cavalo.
Outro momento resgatado é uma foto postada pelo próprio 09, em que ele aparece com um líquido branco no rosto, semelhante a um xampu. As pessoas fizeram insinuações de que era, na verdade, sêmen. Também foram feitas muitas piadas sobre a orientação sexual do garoto.
Os conteúdos circularam na internet e geraram diversos comentários. “Cadê a mãe do Boca 09? Cadê o conselho tutelar ou Ministério Público? O que estão fazendo é crime, não vejo o filho do Neymar sendo exposto dessa maneira igual esse moleque”, escreveu um internauta. “Angustiada com o que vi desse garoto Boca 09, por que o Ministério Público não intervém?”, questionou outra.
A situação do garoto é comparada com a de Melody, a jovem cantora que ganhou notoriedade em 2015, quando tinha apenas sete anos. Na época, viralizaram imagens da menina dançando de forma sensual em cima do palco, com roupas curtas. Na época, o MP abriu um inquérito acerca do conteúdo e do apelo sexual da garota. O caso terminou com os responsáveis assinando um Termo de Ajustamento de Conduta.
A advogada Alessandra Tanure esclarece que os pais possuem “dever legal de providenciar a proteção de toda forma de abuso, negligência e maus tratos, seja no ambiente virtual ou em qualquer outro”.
A omissão em supervisionar o menor é passível de punição legal e os pais — que não possuem poder absoluto sobre seus filhos — podem vir até mesmo a perder o poder parental, conforme nosso Código Civil.
Ela reforça ainda que a liberdade de expressão dos pais não é absoluta e crianças e adolescentes são sujeitos de direitos que possuem proteção absoluta e prioritária em todas as esferas. “O consentimento da criança ou de familiares não exime a conduta da caracterização de crime ou de violação de direitos. A proteção da infância e da adolescência prevalece. Em muitos casos, a prova da participação, incentivo ou facilitação por parte de pais/encarregados é crucial para caracterizar a responsabilidade penal”.
Riscos “são amplos”
Conforme Ana Chaves, os riscos de expor jovens à “adultização” e a situações com teor possivelmente sexualizado “são amplos” e vão desde impactos emocionais até consequências sociais. No âmbito psicológico, por exemplo, há um aumento de ansiedade, depressão por pressão estética e o comportamento incompatível com a idade.
“Pode trazer uma autoimagem distorcida com a dificuldade de aceitar o próprio corpo natural. Quando a gente fala da hipersexualização precoce, ela pode influenciar, sim, em padrões de relacionamentos futuros e aumentar a vulnerabilidade e abusos”, explica.
Além disso, de acordo com Ana, gera sentimentos de inadequação e comparação constante com padrões irreais. “Quando a gente fala do âmbito social, a gente tem que estar atento ao alvo de predadores sexuais e de exploração, o bullying, o cyberbullying, tanto por pares quanto por adultos, a pressão para manter a performance online, gerando desgaste e possivelmente um burnout emocional, a redução da possibilidade de viver experiências típicas e saudáveis da infância e adolescência que vão ser, neste caso, substituídas por um personagem para o público”, completou.
Regulamentação das redes sociais
O governo federal enxerga uma oportunidade pararegulamentar as redes sociaisapós denúncias sobre a adultização e sexualização de crianças gerarem debate nacional. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou que o governo enviará ao Congresso Nacional, nesta quarta, 13, um projeto de lei voltado à regulamentação.
Segundo Lula, a proposta está em análise na Casa Civil há dois meses e será apresentada após reunião marcada para às 15h desta quarta, que deverá resolver divergências entre ministros sobre o texto.
O presidente destacou ainda que a regulamentação é necessária para garantir a segurança dos usuários mais jovens e responsabilizar as empresas de tecnologia pelo conteúdo publicado.
Projeto de lei

Após repercussão do vídeo de Felca, a Câmara dos Deputados definiu, na terça-feira, 12, a criação de um grupo de trabalho (GT) para elaborar um projeto de lei (PL) que combata a adultização de crianças e adolescentes nas redes sociais. O grupo terá 30 dias para apresentar uma proposta.
O presidente da Câmara, Hugo Motta, afirmou que o GT vai apresentar um projeto “que possa trazer o mais avançado e efetivo Projeto de Lei para proteger as nossas crianças” e destacou: “Há pautas importantes que exigem debate, negociação, tempo. Mas essa pauta não pode esperar, porque uma infância perdida não se recupera. Uma criança ferida carrega essa marca para sempre”.
Motta também anunciou que, em 20 de agosto, a Câmara realizará uma Comissão Geral para debate amplo sobre o tema, reforçando: “É inadiável essa discussão e, mais ainda, o posicionamento desta Casa sobre esse tema”. Segundo ele, há mais de 60 projetos de lei na Câmara sobre o assunto.
Cenário baiano

Na Bahia, um projeto de lei que propõe a criação do Programa Municipal de Prevenção e Combate à Adultização e à Cyberpedofilia foi apresentado pela vice-presidente da Comissão Especial das Infâncias e Adolescências da Câmara Municipal de Salvador (CMS), vereadora Isabela Sousa (Cidadania), na terça-feira, 12. A iniciativa busca proteger crianças e adolescentes de práticas e crimes que ameaçam sua dignidade e desenvolvimento, tanto no ambiente físico quanto no digital.
“Estamos vivendo um momento em que as infâncias estão cada vez mais expostas a conteúdos, estímulos e riscos para os quais não estão preparadas. Precisamos agir para proteger nossas crianças e adolescentes de ameaças que, muitas vezes, começam com um clique e podem deixar marcas para a vida inteira”, afirma a vereadora.
O Programa Municipal terá caráter intersetorial, com campanhas que envolvam órgãos públicos, instituições de ensino, unidades de saúde e estabelecimentos privados de acesso coletivo, como hotéis, bares, restaurantes, casas de espetáculo, centros culturais e esportivos, entre outros.
Entre as diretrizes propostas, estão:
- Campanhas educativas permanentes sobre segurança digital, prevenção à adultização e combate à exploração sexual;
- Ações de orientação para crianças, adolescentes, famílias, educadores e servidores públicos;
- Divulgação contínua do Disque 100 e garantia de canais de denúncia seguros e acessíveis;
- Atendimento humanizado e multidisciplinar às vítimas, com encaminhamento para a rede de proteção;
- Parcerias com plataformas digitais e incentivo ao uso responsável da tecnologia.
- Monitoramento e avaliação constantes das ações.
Isabela reforça que o projeto é um chamado à ação diante de um problema urgente e crescente no Brasil. “A internet e os espaços públicos precisam ser seguros para nossas crianças. Não podemos normalizar práticas que violam direitos e antecipam fases que devem ser vividas com proteção e afeto”.
Já o presidente da Comissão, vereador Hamilton Assis (PSOL), afirmou ao A TARDE que também pretende levar o tema para a CMS. “Não podemos esperar que apenas o Congresso Nacional legisle. É papel da Casa criar normas, fiscalizar e fomentar campanhas que combatam essa prática nas redes, nas mídias e em qualquer outro espaço. Pretendo propor uma agenda conjunta com órgãos de proteção, movimentos sociais e especialistas, garantindo que a cidade tenha um protocolo claro de prevenção e enfrentamento, com recorte sociorracial e de gênero”, diz.
Também entafatiza que uma das formas combater o problema é fortalecer os Conselhos Tutelares que atuam de forma precária no município. “Os conselhos tutelares fortalecidos podem ampliar a atuação e conseguir incidir em casos já existentes, mas antes disso, reforçou a importância de termos campanhas e o combate do problema em sua estrutura”.
Como denunciar
Para denunciar casos de exploração infantil, você pode utilizar o Disque 100, um canal de atendimento gratuito e disponível 24 horas, ou entrar em contato com o Conselho Tutelar da sua cidade. É possível denunciar anonimamente e acompanhar o andamento da denúncia.
Canais de denúncia:
Disque 100
- O Disque 100, também conhecido como Disque Direitos Humanos, recebe denúncias de violações contra crianças e adolescentes, incluindo exploração infantil, e pode ser acionado através do telefone 100.
Conselho Tutelar
- O Conselho Tutelar é um órgão municipal responsável por zelar pelos direitos das crianças e adolescentes, e pode ser contatado diretamente pela população para denunciar casos de exploração infantil. Você pode encontrar o endereço e telefone do Conselho Tutelar do seu município no Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (Sipia) do Ministério da Justiça.
Ministério Público do Trabalho
- Para casos de trabalho infantil, é possível denunciar ao Ministério Público do Trabalho (MPT) através do site do MPT.
Delegacia Regional do Trabalho
- Também é possível denunciar casos de trabalho infantil na Delegacia Regional do Trabalho mais próxima.
Secretaria de Assistência Social
- As Secretarias de Assistência Social dos municípios podem receber denúncias e encaminhá-las para os órgãos competentes.
Disque 190
- Em casos de flagrante ou situação de violência que esteja ocorrendo no momento, ligue para 190 (Polícia Militar).
Ligue 180
- O Ligue 180 recebe denúncias em casos de violência sexual contra crianças e adolescentes.
Ouvidoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
- Você pode utilizar o site da Ouvidoria do CNJ para denunciar casos de violência contra crianças e adolescentes.
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