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A crise sanitária só fez agravar a situação da população de rua”, alerta assistente social

Publicado domingo, 21 de março de 2021 às 12:28 h | Atualizado em 21/03/2021, 13:59 | Autor: Gilson Jorge
Sandra Carvalho graduou-se em Serviço Social pela Ucsal há 20 anos
Sandra Carvalho graduou-se em Serviço Social pela Ucsal há 20 anos -

Sandra Carvalho graduou-se em Serviço Social pela Ucsal há 20 anos, mais ou menos quando ingressou no serviço público. Trabalhou na Secretaria Municipal de Saúde, atuou por quatro anos no Consultório de Rua em Salvador, e agora trabalha no Núcleo de Atendimento a Pessoas em Situação de Rua da Defensoria Pública do Estado da Bahia. Nesta semana, esteve mais uma vez na Praça da Piedade, no Centro de Salvador, para conversar com moradores de rua e com profissionais da assistência social e identificar suas demandas. O trabalho em prol de homens, mulheres e crianças que muitas vezes não têm sequer documentos sempre foi difícil, mas em tempos de pandemia as preocupações acompanham a velocidade dos casos de contágio. Nesta entrevista, Sandra fala sobre a atuação dos assistentes sociais em um ano de isolamento social e analisa os desafios da categoria para atender melhor à população e, ao mesmo tempo, se resguardar do vírus.

Nesta última segunda-feira, a senhora esteve na Praça da Piedade com outros profissionais da Defensoria Pública para conversar com a população de rua. Quais foram os objetivos?

Fazer uma escuta das demandas, tanto da população de rua quanto da Defensoria, que tem uma equipe multidisciplinar. Fomos fazer uma escuta sobre as violações de direitos que estão ocorrendo nesse período de pandemia. Está acontecendo o esvaziamento das ruas. As equipes de rua entraram em contato com a Defensoria Pública e informaram que essas pesoas estão sendo abordadas. Fomos procurar saber se essas abordagens respeitam os direitos das pessoas ou se estão sendo retiradas compulsórias. E se há outras violações que podem estar acontecendo nesse período. As equipes que foram à Piedade nesta segunda foram ofertar serviços, são as pessoas que já frequentam a rua, como o pessoal do serviço médico.

Que outros serviços oferecem?

A Defensoria Pública também levou um analista jurídico, para ajudar quem estivesse precisando de documentação e de atendimento remoto com as defensoras ou com os advogados da Defensoria. E tem uma equipe multidisciplinar de profissionais que inclui orientação nutricional, advogados da OAB...

Houve relatos de retirada compulsória?

Não. Mas houve relatos de violência muito presente ali no contexto da Praça da Piedade, em especial da Polícia Militar.

Como está a assistência social nesse período de pandemia? Que estratégias estão sendo feitas para melhorar o atendimento já que temos um ano de isolamento social?

As ofertas de serviços são insuficientes e essa crise sanitária que estamos vivendo só fez agravar a situação da população de rua. Historicamente, tanto o município quanto o estado sempre trataram essa questão de forma muito superficial. Há respostas, mas nenhuma resposta estruturante. Um exemplo é a saúde da população de rua. Há uma política pública estruturante em cuidado da população de rua desde 2011. Mas essa política está sendo atendida por projeto, através do Girassóis de Rua [ONG que oferece consultório de rua em parceria com a Prefeitura de Salvador, que fez seleção agora em fevereiro], mas não é uma resposta estruturante. Projeto tem início, meio e fim. A gente não tem nenhuma garantia de que ao final de dois anos, quando esse projeto terminar, a política vai ter continuidade. Por que é importante ter política estruturante? Essas equipes de rua vão poder construir um cuidado em saúde da população de rua a partir dos itinerários dessas pessoas. É preciso entender que cada território tem uma oferta de serviços diferenciada. E essas equipes precisam estar orientando, precisam estar construindo a partir disso. A população de rua, por exemplo, frequenta os serviços com várias restrições. Elas não têm documentos. Não conhecem a estrutura burocrática desses serviços. Houve uma mudança no fluxo dos serviços de saúde, de alimentação. Você tem um conjunto de instituições que oferecem alimentos de forma caritária, porque de política pública no Centro tem só os dois restaurantes populares da política de segurança alimentar, um no Comércio e outro na Liberdade. Todo esse fluxo está alterado. Tem a questão da higiene, do acesso à água que já não existia, no momento em que se solicita que a população lave as mãos e tenha uma higiene mais intensificada.

A Defensoria Pública tem uma avaliação do tamanho da população de rua em Salvador?

A gente tem um número aproximado. No Brasil, seriam cerca de 220 mil pessoas, segundo o Censo Suas [processo de monitoramento do Sistema Único de Assistência Social]. É a coleta de informações sobre os padrões de serviços, programas e projetos realizados na esfera de ação do Sistema Único da Assistência Social. Não é um censo atualizado, ele contabiliza o número de pessoas em situação de rua no cadastro único. Em Salvador, segundo esse censo, seriam umas 8 mil pessoas. O Censo não é feito desde 2009. A gente tem uma contagem feita pelo Projeto Axé em 2016 que contabilizou 14 mil pessoas.

Mas existe uma diferença entre quem mora na rua e quem tem casa, mas passa o dia inteiro na rua para conseguir garantir um dinheiro. O levantamento do Projeto Axé levou em conta todo mundo?

Sim. Inclusive diversos estudos, como os da pesquisadora Cleisa Rosa, fazem essa diferença. Uma das críticas que a cartografia feita pelo Projeto Axé recebeu foi justamente de não fazer essa diferenciação. A contabilização foi feita pelo espaço que se ocupa na rua, independentemente se a pessoa fica no local ou está e depois vai embora. A gente considera que mesmo os ambulantes estão em situação de rua. Muitos não voltam para casa para não gastar o dinheiro do transporte e dormem ali mesmo. Que é também o critério do decreto 7.053/09, que estabelece a Política Nacional para a População em Situação de Rua.

E pela sua experiência, e possível dizer que aumentou muito a quantidade de pessoas morando na rua depois do advento da pandemia?

A gente não só percebe o aumento da população de rua como também o agravamento da situação de saúde e social das pessoas que já estavam nas ruas. O que está sendo ofertado enquanto isolamento social das pessoas em situação de rua não é auxílio moradia, até porque os recursos não são suficientes para isso. Ofertou-se o hotel social, mas não em número suficiente. O que se tem ofertado para elas é o isolamento em unidades de acolhimento que são coletivas. A população em situação de rua saudável vai ficar sob risco de adquirir a Covid-19 e outras doenças. São abrigos em que têm que conviver com outras 49 pessoas, que é o que está previsto na lei. Mas na rua a pessoa está em um ambiente aberto. No abrigo, um ambiente coletivo com 50 pessoas. Você tem ali uma oferta de alimentação, mas tem o risco à saúde.

Uma pesquisa recente da Fundação Getúlio Vargas mostrou que 61% dos assistentes sociais têm medo de contaminação pelo coronavírus e 46% conhecem pessoas que foram contagiadas. Como está o ânimo do assistente social nesse momento?

A situação de rua em si já é uma questão extrema. Quando se agrava esse problema, impacta diretamente no trabalho do assistente social. A gente tem que reformular as dimensões do nosso processo de trabalho e se preparar para fazer o enfrentamento quanto à precarização do processo de trabalho. Eu atuo em saúde e na Defensoria Pública em direitos humanos. Se a gente lançar o olhar para o trabalhador da assistência social, por exemplo, o Sistema Único de Assistência Social, que é o sistema que mais tem direitos voltados para a população de rua, a gente vai ver um total caos para o cenário do trabalhador de Assistência Social. Primeiro, porque são profissionais que não têm garantida a vacina, apesar de estarem na linha de frente dessa população, garantindo acolhimento e fazendo a intervenção para que essa população seja incluída nos benefícios socioassistenciais. A situação de rua só é vista pelo trabalhador como uma questão social. Não se entende que é também uma questão de saúde e de trabalho, de várias outras políticas. Isso acaba direcionando muito o trabalho do assistente social e perdendo de vista que esse trabalho precisa ser interssetorial para dar conta de sua complexidade.

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