Crônica - Zona de convergência de minha janela | A TARDE
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Crônica - Zona de convergência de minha janela

Publicado domingo, 21 de novembro de 2021 às 07:02 h | Autor: Evanilton Gonçalves* | Escritor
Os fragmentos de vidro tão distantes de mim pareciam ter transpassado meu corpo. A aflição que se seguiu parecia me lembrar que fazia tempo que eu não sonhava | Imagem: Túlio Carapiá | Editoria de Arte A TARDE
Os fragmentos de vidro tão distantes de mim pareciam ter transpassado meu corpo. A aflição que se seguiu parecia me lembrar que fazia tempo que eu não sonhava | Imagem: Túlio Carapiá | Editoria de Arte A TARDE -

Uma frente fria se aproximou da Bahia e me abalou.

Eu dormia quando os ventos começaram a uivar e já quase desperto vi os clarões que fulguravam no céu. Aqui e ali explodiam sons furiosos até que o mundo resolveu inserir na cena a inconfundível vibração propagada pelo ar e percebida pela audição: um vidro que se espatifa. O que se passava? Curioso, abri a área limite de minha atmosfera e lá embaixo enxerguei uma pequena janela basculante estraçalhada. Sua moldura branca fazia um contraste no asfalto preto cortado pelos feixes reluzentes vindos dos diferentes objetos que compõem a paisagem da cidade.

Na dimensão em que me encontrava, também avistei do outro lado da rua um ser humano estendido na calçada, seu corpo sobre um papelão made in algum lugar. Imóvel sob o vento e a chuva, indiferente aos pequenos pedaços de vidro que pareciam estrelinhas espalhadas pelo chão. Chão mijado, cagado, e que servia de morada para aqueles cuja cidadania é uma lenda urbana para tempos oportunos.

Os fragmentos de vidro tão distantes de mim pareciam ter transpassado meu corpo. A aflição que se seguiu parecia me lembrar que fazia tempo que eu não sonhava.

Ali estava rente à janela um ser humano acordado em plena madrugada, assustado, mas não só, porque luzes se acendiam pouco a pouco e silhuetas conferiam também o que se passava.

O que se passava?

Os protetores dos vidros despertavam com seus sensos de vigilâncias. Ainda zonzo, me perguntei o que fazia ali naquela janela àquela hora. Poucos passos antes, estava sob a quentura dos lençóis, alheio aos problemas do território que habito, sem, no entanto, atingir a plenitude do sono.

Por que um estilhaçar de vidros me tirou da cama e me fez caminhar igual a um zumbi? Me senti envergonhado. O frio impiedoso. Recuei. O barulho da chuva imergiu meus pensamentos em um lugar à deriva. As fronteiras que me cercam com um misto de constrangimento e a tentativa de resgatar algum orgulho.

Da janela para a cama eram poucos passos, mas, às vezes, os pensamentos pesam como âncoras.

Veio à mente, numa fração de segundos agitados, os versos “se tem gente com fome / dá de comer”, de Solano Trindade; o boné vermelho do MST; a capa de chuva amarela da série Dark; canções tristes.

Até que eu balancei a cabeça, transportei meu corpo para a cama, mergulhei sob os lençóis e fingi que voltava a dormir.

*Evanilton Gonçalves é autor de O coração em outra América (Paralelo13S)

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