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Daquilo que o coração está cheio

Publicado segunda-feira, 20 de junho de 2022 às 06:00 h | Autor: Franklin Carvalho*
Imagem ilustrativa da imagem Daquilo que o coração está cheio
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Dia desses quase morri engasgado com farofa, e num lugar público. Felizmente, naquele momento eu fiquei mais concentrado na tentativa de recuperar a respiração normal, e esqueci da vergonha, que também poderia ter sido fatal.

Eu estava debruçado sobre meu prato predileto, um bife a cavalo, num restaurante aqui no Dois de Julho, que frequento principalmente porque tem um molho de pimenta supimpa, com as pitadas certas de azeite e vinagre sobrenadando os temperos. Se o molho é assim, já dá para adivinhar que a comida é excelente, e que o estabelecimento tem grande clientela. Porém minha experiência de quase morte ocorreu num começo de noite em que a casa estava vazia, e só havia fregueses nas mesas colocadas na calçada, eles degustando cervejas.

No salão principal, havia somente este homem, que dispensou o acompanhamento de feijão no bife para não ter pesadelos indigestos na hora do sono, e pediu farofa em seu lugar. Enquanto esperava a comida ficar pronta, eu era assistido apenas por uma TV que transmitia um desses jornais locais, com matéria de meia hora sobre um carro enguiçado em via pública.

Eis que o homem, este que vos fala, já devorando o ovo, a farofa e a pimenta, deu uma terceira garfada que o deixou entalado. Do alto da minha soberba, julguei inicialmente poder resolver o problema sozinho, me sacudindo, pondo-me de pé, andando até o balcão que estava sem atendente, e novamente me sentando.

De repente, um medo enorme começou a me assaltar naquela sala vazia, com o corpo enguiçado, olhando o carro e o telejornalismo que não saíam do lugar. E eu ainda tentava entender a situação com meus poucos conhecimentos de fisiologia.

Eu sabia que na garganta temos a epiglote, que é tipo uma cartilagem que deixa passar o ar e se dobra quando ingerimos alimentos. Mas, eu me perguntava, se a epiglote deixar a farofa assumir o comando, onde estaria a farinha naquela hora? No pulmão? Na aorta? No pâncreas? São poucos mesmo os meus conhecimentos de fisiologia.

A asfixia só aumentava, até que avistei o garçom novato do restaurante, que talvez tivesse sido escalado para aquele turno por ser justamente um horário de pouco movimento, e fiz toda a mímica para que se aproximasse. Era um rapazinho bem novo, tão escandalizado quanto eu com a situação. Consegui lhe transmitir as sugestões que tinha visto para casos do tipo em vídeos de primeiros socorros na internet, e o moço pressionou o polegar na região do meu tórax.

Deu certo, claro, e felizmente estou aqui, falando por quase meia hora desse episódio de gula e de dicas de saúde veiculadas entre mil banalidades da web. Mas devo dizer que não aprendi muito com o incidente.

Não me tornei um homem melhor, porque já me achava bem arranjado com as minhas crenças. Não resolvi trabalhar menos nem aproveitar mais o tempo e meu pouco dinheiro com festas, viagens, a família e os amigos. Isso já estava nos planos. Também não quis me tornar um coach ou escrever livros de autoajuda contando um caso de superação pessoal.

Mas, por falar em banalidades da web, chegamos ao ponto em que alguém poderá dizer que desperdiço espaço nobre falando de engasgo quando há assuntos mais urgentes a tratar, inclusive a fome de muita gente que não tem bife nem ovo nem farofa, e famílias indígenas que correm risco de vida porque suas terras são devastadas por garimpo.

E, no entanto, eu respondo que inventei esta arte de usar o fato pessoal, e até risível, de eu ter penado em vasto salão, dependendo da ajuda de um estranho, justamente para atrair o leitor a estas poucas linhas finais que expõem dramas coletivos. Que esse texto é uma armadilha – e o leitor já o percebeu – que veicula um protesto que também está entalado.

Um protesto que tenho lançado aos ventos, mas que soa mínimo na vastidão das ruas e das redes sociais. Porém prossigo com ele nas canções que entoo e até no que redijo com a intenção primeira de fazer rir (e rir também é uma forma de resistir!).

Contra dores que latejam muito fortes, fora e dentro de mim.

*É autor de A ordem interior do mundo (7Letras)  e Eu, que não amo ninguém (Ed. Reformatório)

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