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Incertezas marcam políticas de educação superior para indígenas

Nos últimos anos, bolsa permanência nas universidades para indígenas tem sofrido alterações e cortes

Publicado domingo, 12 de junho de 2022 às 00:00 h | Autor: Vinícius Marques
Rutian Pataxó, formada em economia, hoje cursa direito
Rutian Pataxó, formada em economia, hoje cursa direito -

Em 2005, quando a Universidade Federal da Bahia (Ufba) implementou as cotas para indígenas, duas moças pataxós foram aprovadas. A entrada das duas jovens na universidade iniciou um movimento silencioso, que ainda hoje se desdobra, ampliando a presença de povos originários no ambiente universitário.

O acesso foi decisivo para que Rutian do Rosário Santos, a Rutian Pataxó, entendesse que aquele lugar também poderia ser ocupado por ela. Na época, ainda estudante do ensino fundamental, ela acreditava que o sonho do ensino superior era algo distante, devido à ausência de condições financeiras para custear uma universidade particular.

“Abriram as portas para que pudéssemos sonhar em entrar na universidade”, lembra. Três anos depois, aos 17 anos, ela foi aprovada no curso de Economia:  “Com a perspectiva de mais pessoas entrando, você entra e puxa também os seus”. Hoje, graduada em ciências econômicas, e atualmente cursando direito, ela possui ainda uma especialização em Direitos Humanos e Contemporaneidade e atua como secretária geral do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba), além de fazer parte da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí).

Mas o caminho até a universidade não foi simples. Na época, ela ingressou na universidade pelo processo de vestibular, que para os povos aldeados podia ser bastante excludente – Rutian vem da aldeia Barra Velha, no sul da Bahia. 

Para realizar as provas, que eram em duas fases, os candidatos precisavam se deslocar até uma sede da universidade, e a mais próxima da aldeia dela ficava localizada em Itabuna, a cerca de 500 km de distância.

A Ufba também cobrava uma taxa de inscrição, que na época custava R$ 100. “Era todo um processo que excluía esses grupos que eles mesmos tinham disponibilizado vagas extras”, diz a economista. 

Quando ela entrou na universidade, em 2008, eram apenas 10 alunos indígenas matriculados no total. Em 2005, foram duas; em 2006, quatro, e em 2007 mais quatro. Em 2008, foram duas, e Rutian era uma delas.

“A gente passava em pouco número justamente porque a prova da Ufba era uma prova de nível muito alto e acabava tendo uma fase aberta também, e a condição dos povos indígenas vindo de escolas públicas, de escolas rurais, dificultava muito a entrada desses estudantes”.

Mesmo após entrar na universidade, estudantes indígenas ainda precisam se articular para ter suas vozes e demandas ouvidas. “A gente atuava muito internamente na faculdade, principalmente para custear bolsas”.

Numa dessas mobilizações, em 2010, estudantes encontraram um edital sobre projetos de pesquisa em que havia a possibilidade de a comunidade criar um Programa de Educação Tutorial (PET) sobre o tema de conexões e saberes de comunidades indígenas. De acordo com Rutiã, esse foi um grande avanço para o movimento estudantil indígena dentro da universidade.

“Sempre nos colocamos nessa discussão para dar visibilidade à temática indígena. Se a gente não falasse sobre nós, ninguém iria falar. Sempre levávamos essas temáticas em todas as nossas aulas, com reivindicações. Nossos trabalhos de conclusão de curso eram também sobre a temática indígena, não abríamos mão de falar sobre nós mesmos, então, foi uma construção durante esses anos todos”, afirma.

Ela conta também que sua atuação é fruto de toda essa articulação no movimento estudantil, não só na Ufba, mas nacionalmente. Rutian já participou de ações representantes de estudantes indígenas do Nordeste e todo esse histórico a projetou para que fosse convidada para participar da Anaí e do Mupoiba, fruto da dedicação na luta de povos indígenas.

Uma virada no movimento estudantil aconteceu em 2014, com a chegada do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que democratizou o acesso à universidade. Isso porque o Enem chega muito mais próximo das comunidades, em todas as cidades, facilitando que mais aldeados possam se candidatar.

Em 2014, outro grande avanço foi implementado pelo Ministério da Educação (MEC) para estudantes indígenas, quilombolas e de vulnerabilidade social, o Programa de Bolsa Permanência. 

Na época, era um auxílio que disponibilizava R$ 500 para os estudantes com o intuito de ajudar nos custos para que pudessem continuar estudando.

No entanto, nos últimos anos, essa bolsa permanência tem sofrido alterações e cortes, indo desde o processo de abertura do edital até o número de estudantes contemplados. 

“O governo Temer cortou esse benefício para baixa renda e ficou somente os outros dois. Assim que o atual governo entrou, ele cortou o auxílio, só abrindo uma vez por ano, quando o movimento indígena e quilombola se mobilizavam”, lembra Rutian Pataxó.

Já foram feitos três movimentos em Brasília em relação à bolsa permanência, e só quando lutam pelo direito o edital da bolsa é aberto. Recentemente, essa abertura aconteceu, mas com um número de bolsas reduzidos. “Não tem como todos os estudantes serem contemplados. De certa forma, estamos num processo de declínio das políticas educacionais”, lamenta.

Segundo Cassia Maciel, pró-reitora de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil da Ufba, responsável pelo desenvolvimento e aplicação de políticas de permanência no ensino superior, atualmente o Programa Bolsa Permanência oferece um valor de R$ 900 para 156 alunos. No total, a universidade possui 211 estudantes indígenas matriculados.

A pró-reitora destaca que este é um programa do MEC, sob a gestão do Governo Federal, em que a Ufba apenas informa quem são os estudantes aptos e faz a homologação do pagamento deles no sistema. Nesse sentido, a universidade não tem muito poder de decisão além da administração interna do programa.

Menos vagas

Cássia conta que o ministério ainda não informou quando o programa será aberto para novos estudantes no semestre que se inicia em breve e que, neste ano, o governo federal também distribuiu menos vagas do que o número de estudantes que pleitearam o auxílio.

“Esse é um aporte financeiro muito importante para essa permanência e foi abalado. A universidade tem buscado estratégias de incorporar cada vez mais estudantes indígenas em sua política de assistência estudantil, mas estamos sem esse suporte financeiro do MEC”, afirma Cássia.

Ela diz também que os alunos que não foram contemplados ainda contam com toda a política de assistência estudantil da Ufba, que envolve restaurante universitário, creche, transporte universitário, auxílio saúde e material didático no curso de odontologia. No entanto, ela entende que sem a bolsa permanência muitos alunos saem prejudicados. Mas alguns deles têm recebido um auxílio emergencial da Ufba, no valor de R$ 400. 

“Esse é o valor que podemos pagar, mas isso ainda é insuficiente para a manutenção deles”, afirma Cássia. Segundo ela, a pró-reitoria deve criar, já para o próximo semestre, um auxílio específico para os estudantes indígenas e quilombolas, custeado pela Ufba. 

“Como o programa do Governo Federal não está atendendo a todos, vamos criar um específico para que quando um estudante que conseguir entrar no do MEC fique no do MEC e quem não conseguir fica nesse que vai ser criado pela Ufba”, explica.

Uma das primeiras estudantes a entrar na Ufba pelas cotas indígenas, ainda em 2005, e que foi referência para Rutian, é Anari Braz Bonfim, do povo Pataxó. Graduada em Letras e mestre em Estudos Étnicos e Africanos na Ufba, atualmente ela é doutoranda em Antropologia Social na UFRJ.

Na época da sua graduação, Anari conta que não contou com nenhum auxílio ou bolsa de início, o que foi um desafio para ela e sua irmã, que também tinha sido aprovada. Ela lembra que a professora responsável pela entrada dos indígenas, Marilda Paraíso, disse que tentaria conseguir uma bolsa para elas, e consegui, mas através de outras instituições.

“Foram seis meses até recebermos essas bolsas e nesses meses as coisas foram difíceis. A universidade tem a política de assistência estudantil, mas, no entanto, eles não entendiam a nossa especificidade, de sermos indígenas, e quando a gente procura a universidade nos deparamos com dois mil alunos à espera da vaga da residência”, lembra Anari.

Mestre na aldeia

Após o mestrado, Anari voltou para a aldeia para trabalhar na escola de lá. Depois, foi trabalhar como consultora no MEC, e agora foca em seu doutorado. Quem também decidiu voltar para a aldeia foi Sirlene Cau Lopes, da comunidade de Coroa Vermelha, no sul da Bahia.

Formada em enfermagem, ela atualmente trabalha na coordenação do polo de saúde de Porto Seguro, que atende sua comunidade. “É uma satisfação quando a gente sai da nossa aldeia e vai estudar fora. Temos esse sentimento que a gente tem que retornar para o nosso lar, nossa casa, e também estar atuando pela comunidade”, explica Sirlene.

Ela conta que o fato de retornar para a comunidade é poder dar um retorno para os que os apoiaram e depositaram a confiança neles. “Temos um olhar diferenciado, já conhecemos a dinâmica do nosso povo, temos uma relação com aquele povo, já conhecemos as pessoas, então, o fato de você trabalhar diretamente com a comunidade é ter um olhar diferenciado para as demandas daquela comunidade”, afirma.

Rutian não retornou para a aldeia, mas ratifica que daqui ela segue contribuindo com o movimento. “Todo mundo está, de certa forma, retribuindo e contribuindo com o movimento e com os povos indígenas, independentemente de onde estejam”, afirma.

Segundo ela, alguns retornaram, principalmente aqueles que são professores, médicos e enfermeiros, porque são demandas importantes na comunidade e que estavam em déficit, mas outros estudantes contribuem dos locais onde estão. “Alguns em cargos de confiança, no Estado, na coordenação de povos indígenas, na coordenação escolar indígena, e em outros espaços de atuação”, acrescenta Rutian.

Atualmente, uma preocupação dos povos indígenas é o Marco Temporal, tese que defende que povos indígenas só podem reivindicar terras onde já estavam no dia 5 de outubro de 1988. Nesse âmbito, os povos indígenas temem perder direito a territórios em processo de demarcação.

Para Rutian, isso também diz respeito à educação, já que “interfere em toda a dinâmica, porque sem um território não se tem possibilidade de ter escola, posto de saúde, não tem possibilidade de ter vida”.

De acordo com ela, no estado da Bahia há várias comunidades que não têm terras demarcadas e a maioria está ainda em processo de revisão de limites, para aumento de limite de território. Ela conta que os processos estão paralisados há bastante tempo, assim, o julgamento do Marco Temporal pode interferir nesses territórios que estão em processo, como o da comunidade dela, já demarcado.

“Não se tem como estar, ter processos na questão de educação, saúde, se você não tem um território. Quando o povo indígena fala que o território é a vida, é exatamente isso. Não tem como ter uma vida coletiva, não tem como ter uma sociedade coletiva dos povos indígenas, se ele não tiver suas terras”, defende Rutian.

Em discussão desde 2017, a tese do Marco Temporal que deveria ser julgado no próximo dia 23, foi adiado indefinidamente no último dia 2 de junho por decisão do ministro Luiz Fux, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). É a quarta vez que isso acontece e o caso já estava parado desde setembro de 2021.

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