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Luiz Lourenço: “Temos que pensar, sobretudo, em como preservar a vida”

Publicado segunda-feira, 11 de julho de 2022 às 00:30 h | Atualizado em 11/07/2022, 09:34 | Autor: Gilson Jorge
Sociólogo Lula Lourenço
Sociólogo Lula Lourenço -

Há dois anos, o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime lançava um relatório mundial que apontava um crescimento de 30% no número de pessoas que consumiam drogas em 2018, em comparação a 2009. Se, no plano da saúde pública, o estudo traz o preocupante dado de que mais de 35 milhões de pessoas no planeta apresentaram transtornos pelo uso de drogas, a relação entre usuários e o sistema de justiça não pode deixar ninguém relaxado.

Nos 69 países onde o estudo foi realizado, mais da metade dos problemas com o poder judiciário foram decorrentes da venda e consumo de cannabis (maconha), droga que foi recentemente legalizada no Uruguai e em alguns estados americanos. Afinal, a droga é majoritariamente um problema de saúde pública ou caso de polícia?

Nesta entrevista, o sociólogo e professor da Ufba, Luiz Lourenço, especialista em políticas de encarceramento, defende que a tipificação do tráfico de drogas como crime hediondo não é a melhor estratégia e clama por um debate social em torno da descriminalização das drogas e de punições que não envolvam privação de liberdade a quem comete crimes sem gravidade.

Algumas autoridades defendem a descriminalização da venda e do uso de drogas como uma estratégia para diminuir a violência gerada pelo tráfico de drogas. Qual a sua opinião?

A descriminalização das drogas tem, sim, um potencial para que a gente diminua os patamares de violência nesse tipo de mercado. À medida em que temos uma legislação que criminaliza e que equipara o tráfico de drogas a um crime hediondo, também damos subsídio para que as forças de segurança pública, sobretudo as polícias militares, atuem combatendo esse tipo de ilicitude com poder de fogo muito pesado e um combate ostensivo à droga. E esse combate ostensivo, por vezes, fomenta o conflito não só entre policiais e grupos que se especializam nesse tipo de substância ilícita, as drogas, como também entre os próprios grupos. O Estado acaba imprimindo uma tônica de guerra, fomentando, assim, esse conflito. Ao passo em que se a gente investir em políticas de descriminalização e tratar a questão das drogas como políticas de saúde, a gente viraria essa chave, atuaria de uma maneira menos ofensiva e mais em prol de uma segurança de caráter público.

Policiais e autoridades públicas se queixam da rapidez com que pessoas presas por envolvimento com o tráfico de drogas são soltas pela justiça. Como o senhor vê essa questão do encarceramento?

Com certeza, temos que avançar no sentido da descriminalização do comércio de drogas e da posse de substâncias. O que temos vivenciado com essa política de guerra às drogas é que essa é uma guerra em que quem mais perde é a população. A gente não vê nada em termos de uma segurança pública, de uma sensação de melhor civilidade. Isso tem ceifado a vida de muita gente, principalmente a população jovem e negra das periferias urbanas do país.   Se a gente não mudar essa direção, não fizer um debate sobre as drogas que leve em conta as questões de saúde, não vamos conseguir avançar no sentido de uma ação melhor nesse quadro de violência que estamos vivendo.

Como o senhor mencionou, a questão passa por um debate na sociedade. Uma sociedade que é bastante conservadora em relação ao tema. Estamos às vésperas de uma eleição. Além dos cargos executivos, tem eleição para o Congresso, onde se fazem as leis. O que a parte da sociedade civil interessada em mudanças na política para drogas pode fazer para tentar influenciar esse novo Congresso que vai ser eleito?

Eu acredito que nem o campo da esquerda nem o da direita têm maturidade ainda para fazer esse debate que tem que ser feito. Um debate franco, de forma aberta, com especialistas. Num passado recente, pelo menos, não houve. É preciso um debate amplo, que envolva a sociedade civil, para avançarmos nessa questão. Tivemos uma política de guerra às drogas em vários contextos mundo afora, em que se associou um praticante desse tipo de comércio a outras atividades ilegais. Inclusive quando atribuímos na legislação uma pena de crime hediondo ao tráfico de drogas, acabamos ratificando que esse criminoso hediondo está qualificado para esse tipo de comércio, uma vez que ele não tem mais nada a perder. Se a gente descriminaliza e passa a ter uma visão menos militarizada, qualquer forma de lidar que não seja com armamentos militares pesados, caveirões em comunidades periféricas, a gente desmonta essa guerra. E, sobretudo, tem que criar uma política pública para quem hoje é a maior vítima dessa guerra. Temos que preservar a vida desses jovens negros que estão morrendo em todo o Brasil, inclusive em Salvador. Se não fizermos política pública para essa população, não vai ter diminuição de homicídios e vamos continuar acreditando que é a droga que está matando. Na verdade, essa tônica de guerra às drogas é como colocar gasolina na fogueira.  Estamos alimentando isso. O Estado acaba fomentando conflitos que resultam em mortes.

Quais são os mecanismos que o Estado poderia usar para diminuir a violência?

Há vários. Temos que pensar, sobretudo, em como preservar a vida. Primeiro, atuar na captura de quem está matando esse pessoal. Tirar de circulação via prisão, por responsabilização criminal, quem tem homicídios a responder. Outra coisa é diminuir as maneiras como esses jovens estão morrendo.  Um controle maior sobre as armas. A arma é um instrumento letal muito potente e muito fácil de ser manejada para a vida de pessoas. E uma terceira coisa seria oferecer alternativas a esses jovens através da inserção no mercado de trabalho mais qualificado. Atuando nessas três frentes, acredito que não teríamos resultados onerosos, mas sim proveitosos, em uma transição para um modelo menos criminalizado das drogas.

Eventos recentes, como a prisão na Espanha de um militar que transportava cocaína em um avião das forças armadas, e um pouco mais antigos, como a apreensão de um helicóptero cheio de cocaína na fazenda de um senador da República mostram claramente que o comando do tráfico não está nos bairros periféricos e que há gente poderosa no negócio...

Sim, com certeza. A guerra tem uma segmentação, uma seletividade em relação a como e onde é feito o enfrentamento.  A gente não vê essa ostensividade militar e caveirão em condomínio de luxo. Você não vê o mesmo tipo de abordagem policial para quem está comercializando drogas sintéticas em uma rave e quem está na esquina de uma rua periférica. São abordagens diferentes, tem uma desproporção.  Quem é mais agredido é o jovem negro da periferia que está ali procurando alguma maneira de subsistir numa sociedade desigual, sem a assistência do Estado, tanto no seu bairro quanto nas oportunidades de ganho econômico.  Se a gente não perceber isso, vai sempre acreditar nesse pânico moral em relação às drogas. A maioria das drogas que a sociedade consome já está legalizada. A principal é o álcool, e os índices de violência doméstica estão fortemente ligados ao consumo e abuso de álcool.  E não ouvimos falar em nenhuma política mais assertiva a respeito desse tipo de abuso.

Mesmo se houvesse a descriminalização das drogas, as armas já estão aí, no tráfico e no crime em geral. O Governo Federal tem promovido iniciativas armamentistas, e tem apoio no Congresso.  O que poderia ser feito, em um outro contexto político, para pressionar o Estado a controlar o fluxo de armas?

A questão das armas é fundamental. As armas estão cada vez mais letais e com maior facilidade de acesso, de aquisição.  A legislação tem sido flexibilizada e há uma falsa ideia de que a arma vai garantir segurança para quem tem porte de arma. Mas o caso de Bagé esta semana mostrou que não. [A advogada Ana Laura Barbalho, 28 anos, pegou uma arma da família para tentar conter uma agressão a uma amiga em sua residência, mas acabou dominada e morta a tiros pelo agressor com sua própria arma]. Podemos pensar em ene eventos. Se fizermos um levantamento temático vai ter a noção de que a arma, de fato, não protege.  A arma não se configura num colete à prova de bala. Muito pelo contrário, tende a ser um vetor de violência.  Não consigo entender a lógica da segurança através de armas.  O uso responsável de armas deve ser feito pela polícia, pelas forças que servem para garantir a segurança pública. O cidadão comum tem que ficar em paz e não ser mais um vetor de violência nessa sociedade tão violenta que vivemos, com discursos inflamados de ódio a torto e à direita. Isso não vai garantir segurança a ninguém.

O senhor defende políticas que não incluam o encarceramento de quem cometeu pequenos delitos. Que tipo de medidas punitivas seria adequado para quem não cometeu homicídio, por exemplo?

Mundo afora existe uma série de medidas de responsabilidade que não passam pela pena privativa de liberdade. Não faz sentido a gente prender tantos e tão mal. Fizemos uma pesquisa há quatro anos no Presídio Salvador, que é um local de prisão temporária. Vou dar um exemplo de como o encarceramento é oneroso para o Estado: boa parte dos internos nesse presídio foi presa sob acusação de tentativa de roubo de celular, aparelhos que custam R$ 600, R$ 700. Na época, o Nestor Duarte [então superintendente de Administração Penitenciária e Ressocialização] nos informou que o custo de cada detento era de R $120 por dia. Em uma semana, o custo para o Estado era maior do que o valor do bem que o detento havia tentado roubar.  Se esses recursos destinados ao encarceramento fossem usados em políticas de promoção social, qualificação profissional e políticas voltadas para que os egressos do sistema penal não reincidissem, seria mais proveitoso para a sociedade do que esses altos índices de encarceramento, que acabam promovendo atividades criminosas.

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