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“Nós temos como mudar essa história”, aponta anciã indígena

Publicado domingo, 18 de abril de 2021 às 06:00 h | Atualizado em 18/04/2021, 18:24 | Autor: Marcos Dias
Mayá é uma das lideranças da comunidade Pataxó Hãhãhãe, do município de Pau Brasil
Mayá é uma das lideranças da comunidade Pataxó Hãhãhãe, do município de Pau Brasil -

A anciã indígena Mayá, uma das lideranças da comunidade Pataxó Hãhãhãe, do município de Pau Brasil, anda muito ocupada. Além do território do seu povo, no sul da Bahia, ela atua como conselheira em outras comunidades, é professora e diretora-executiva da ONG Thydewá, que significa Esperança da Terra. Para seu povo, ancião é todo idoso com saberes ancestrais e deve ser respeitado e ouvido. Também tem sido ativa nas redes sociais, como na iniciativa Encontros Digitais com os Indígenas, realizado neste mês, integrando o projeto audiovisual Sabedorias Indígenas em Ação. Até agora, foram produzidos 24 documentários de curta duração com 10 indígenas de seis etnias, disponíveis no YouTube. A segunda temporada, de acordo com o presidente da ONG, Sebastián Gerlic, vai contar com cerca de 15 filmes, que ainda estão em fase de edição, com novos indígenas.

Como tem sido este último ano para vocês aí?

A coisa aqui tem sido terrível, porque com essa pandemia, esse vírus, a gente está passando por uma luta muito forte, muitas dificuldades. O pessoal aqui não está podendo trabalhar, porque não pode estar levando nada para vender na cidade, e aí as dificuldades a cada hora estão aumentando, muita dificuldade, muito sofrimento. Em relação à doença, estamos controlando aqui com nossos banhos, nossos chás, nossos rituais, porque a gente acredita nos seres espirituais, nos encantados da floresta, então, a gente vem com essa luta aqui. E só veio a óbito um índio da nossa comunidade, um dos caciques. O vírus passou por alguns, mas foram poucos, ninguém foi para hospital, lógico, não deixamos, estamos cuidando aqui, graças a Deus não tem problema dentro na comunidade de Covid.

Durante a pandemia, a senhora participou de projetos como o Sabedorias Indígenas. Em um dos vídeos, diz que o coronavírus veio para que a gente parasse, pensasse e entendesse a mensagem da Mãe Terra. Acredita que isso está acontecendo?

Olha, em relação a nós, indígenas, a gente sempre garante que está acontecendo. Agora, o que eu não acredito é com os não índios, que estão aí por fora e não estão acreditando. É por isso que estamos tentando passar para o pessoal que a gente tem que ter respeito pela natureza, com a Mãe Terra, com a lua, o sol, as estrelas, com as nossas florestas, para combater esse vírus. O desrespeito é muito grande, agora, para nós, há uma preparação e já estamos alcançando graças.

A senhora fala da importância dos seus rituais para lidar com a pandemia. Mas um dos dramas dos não índios, dos ocidentais, é exatamente a inexistência de rituais, o materialismo, que acaba causando um afastamento da nossa própria humanidade. Tanto que, com vocês, a senhora diz que em seus rituais também pedem pelos não índios. Como é possível ao não índio resgatar essa dimensão?

Pedimos, sim. Eu sempre estou dizendo para os não índios o seguinte: cada um tem sua cultura, sua forma de viver e sua forma de ser, então, cada um respeitando a sua cultura e a fortalecendo, também tem a maneira, porque quando um ora de um lado, outro ora de outro e outro ora de outro, a gente está tentando se fortalecer um com o outro. Porque o meu trabalho com o meu povo, quando a gente faz os nossos rituais, a gente coloca o nosso povo não índio dentro do ritual, mesmo quem está fora, quem está longe, a gente grita por essa nação, a gente está gritando pelo nosso Brasil, o nosso país que está nessa pandemia terrível.

O que é morte para o seu povo?

Nós sempre falamos que o nosso povo se mudou, foi para o além, mas não deixou de estar aqui, sempre está junto com a gente. Então, para nós, a morte é uma maneira de um descanso para o nosso povo, porque jamais eles deixam de existir na nossa comunidade, sempre estamos juntos com os nossos entes queridos que saíram, que dormiram o sono eterno, adormeceram. Então, para mim, a morte é só um descanso para a nossa nação.

A senhora também tem uma atuação como professora, inclusive formando outros professores. Como isso se deu?

Eu tenho 36 anos de trabalho aqui nessa comunidade. Além dessa comunidade, já trabalhei também com não índios por 12 anos pela prefeitura de Itaju do Colônia e trabalhei três anos pela prefeitura de Itabuna. Aprendi fora da minha comunidade porque fomos expulsos, então, tive aprendizado com não índios, só que após 12 anos de trabalho numa prefeitura, três anos de trabalho em outra, retornei para minha comunidade. E estou aqui até hoje atuando, fazendo meu trabalho com o meu povo. O meu aprendizado fora foi enriquecedor, sim, mas me enriqueci muito mais trabalhando com meu povo, porque fiz um curso de magistério indígena para trabalhar com o povo indígena, foi uma riqueza muito grande.

Onde foi o curso?

Em Salvador, terminei de fazer em Salvador, mas começamos fazendo de aldeia em aldeia, um itinerário.

E essa questão da expulsão da aldeia, o que houve na época?

Na época, o fazendeiro nos expulsou da nossa comunidade, aí passamos quase 40 anos fora, só que depois resolvemos reivindicar, retornar, porque era um território de domínio dos nossos antepassados, dos nossos avós, bisavós, e nós, como herdeiros desse território, guerreamos para defender e aqui estamos.

Em outro projeto de que a senhora participou, o Memória Viva, há uma troca de conhecimento entre os anciões e os mais jovens. Por aqui, os mais velhos, os que não produzem mais no sentido de trabalho, costumam ser vistos como um peso para a sociedade e, às vezes, para as famílias...

Nós, indígenas, damos muito valor aos nossos anciões, porque são um livro aberto, têm muita coisa para nos falar. A gente aqui sempre participa das reuniões, os anciões contam história, contam a trajetória de vida deles, o que passaram e o que vêm passando. E hoje a gente vê na parte não índio que até os filhos não estão sentando mais com seus pais para conversar, perguntar como foi a vida do pai, como foi a luta com os pais deles. O aprendizado com sua própria família e os anciões, mesmo os que não são da própria família, é muito importante, é muito enriquecedor para a gente, porque eu mesma aprendi muito com os anciões da minha comunidade, mas também aprendi muito com os anciões não índios. Tenho amigos não índios com quem aprendi, tenho várias lições deles. A importância que a gente dá para o ancião é nesse sentido, e sentimos que os não índios têm um afastamento muito grande dos anciões. Sentimos esse desrespeito, essa falta de amor, e eles são uma biblioteca!

Salvador é a terceira capital do país com maior número de indígenas em área urbana no Brasil, com cerca de 7.560 índios que vivem aqui. Como se dão as trocas quando eles voltam para a aldeia e o que dizem sobre o que passam por aqui?

Aqui na minha aldeia mesmo tinham muitos que estavam fora, quando retornaram eles contaram várias histórias da vivência, uns tiveram boa vivência, outros tiveram má vivência, foram tratados mal, não foram respeitados, considerados, como deveriam ser. Então, eles voltaram e estão sentindo a diferença. Se teve um pouco de dificuldade da gente de colocá-los no ritmo indígena, é porque vieram de lá com uma outra crença, outra cultura, já estavam com a cultura do não índio. Aí, deu um probleminha, porque sempre dá, porque muitos estão junto ainda com as igrejas evangélicas também, então, estamos passando por dificuldade com esses índios que estavam fora. E com aqueles que ainda estão.

Se a senhora fosse recontar a história do Brasil, por onde começaria e o que deveria ser mudado em relação à versão oficial?

Olha, sempre estou dizendo para meu povo e para o povo lá fora quando vou dar palestras, que os livros que dizem ‘o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral, os índios andavam nus...”, eu digo: por que nós começamos a vestir roupas e hoje temos a vergonha de andar nus? Porque quem nos ensinou a vestir esse vestuário foram os próprios portugueses. Porque encontraram uma nação de uma forma diferente, e, hoje, se, por acaso, um índio sair nu na cidade de Pau Brasil, esse índio está louco na versão dos não índios. Hoje, quando vejo a discriminação que índio não pode usar celular, índio não pode usar isso, não pode usar aquilo, eu digo: pode sim, porque quem nos ensinou foram vocês. E nós temos que caminhar hoje com a própria sociedade, senão vamos ficar para trás, e não vamos aprender aquilo que também é de interesse para a gente. Temos que aprender, hoje é uma troca de experiências do índio com o não índio, porque dentro da nossa nação tem coisas muito lindas e maravilhosas que o não índio podia aprender para que seja aplicado em suas escolas. Então, meu amigo, os livros falam de muitas histórias não verdadeiras, histórias falsas, e nós temos como mudar essa história. Essa semana eu mesma disse para um senhor que chegou de outro país e disse que queria conversar um pouco com os índios, porque ele, que ainda estava com a cabeça poluída, achava que o índio não poderia estudar tanto, achava que índio não precisava fazer mestrado, não precisava ir para a universidade e que devia estudar até um certo limite e parasse para exercer suas atividades da forma como estava. Por isso eu perguntei a ele: qual a diferença de mim para você, para sua mulher, qual? Por que a gente tem que parar de estudar e por que nós temos que ser os últimos? Por quê? Nós temos também condições de estar lado a lado. Que não queiram que a gente passe à frente, mas fiquemos lado a lado, para a gente poder ter nossa formação e dar formação aos nossos filhos e sobrinhos sobre a maneira que o Brasil e o mundo estão. Para que a gente possa enfrentar as grandes dificuldades, usar as redes sociais, enfrentar os grandes políticos que estão aí de unhas e dentes querendo nos engolir, querendo tomar aquilo que é nosso, nossos territórios, nossos direitos, como hoje temos um presidente que não dá o direito a nós, indígenas, de ir e vir com a própria liberdade e termos nosso espaço para andar, sem ter medo de alguém. É terrível, sinto uma tristeza muito grande com o pensar de alguns políticos, o pensar de alguns não índios, o pensar de algumas escolas ainda; então, tenho uma preocupação muito grande.

Qual a palavra do seu povo que a senhora mais gosta e por quê?

A gente teve que deixar de falar porque fomos proibidos. Sou do tronco tupinambá, mas nasci aqui na comunidade dos Pataxó Hãhãhãe. Meu avô e meu biso são Tupinambá de Olivença, vieram para cá novos, fizeram família aqui. Mas com essa ignorância e atraso dos não índios de que nós tínhamos que perder nosso idioma e deixar de falar nossa língua, deixamos de falar por medo, porque tinha que ser escondido. E hoje a gente está lutando por esse resgate do nosso idioma, isso é muito forte para nós. Às vezes, posso até pensar que não tem mais validade para mim, mas para meus jovens, minhas crianças, meus netos, bisnetos e tataranetos vai ser muito importante que a gente venha dar vida e uma visão melhor para o nosso povo e para aqueles que não querem entender a razão por que nós hoje falamos português. Para que não aconteça com os jovens o que está acontecendo comigo, que já sou uma anciã de 71 anos, mas que ainda estou aí, com luta, garra, coragem e fé para lutar e estou lutando por esse idioma para que venha enriquecer, crescer, venha dar vida e fortaleza à nossa nação de uma coisa que tiraram para que a gente não falasse porque não podia dizer que era índio. Hoje, ou a gente corre para ensinar nossos jovens ou então vai sempre acontecer o que vinha acontecendo com nós, os anciões que já foram e aqueles que ainda estão aí e não sabem dizer nem uma palavra em tupi. Quando a gente fala enekoêma, estou dizendo bom dia, e tem muitos que dizem ‘o que é isso, o que significa?, e eu digo: eu estou dando bom dia. A gente está fazendo esse trabalho. Para mim, é uma palavra muito forte e tenho que dizer para minha nação para se preparar e lutar por esse direito de resgatar o idioma tupi, para crescer, dar força, fé e coragem para cada um que aqui está.

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