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"O trauma está conectado com todos tipos de transtornos mentais"

Doutora em Medicina e Saúde, Liana defendeu tese sobre relação entre estresse pós-traumático e a impulsividade

Publicado segunda-feira, 17 de janeiro de 2022 às 07:15 h | Autor: Gilson Jorge

Na década de 1990, a ONG californiana Kaiser Permanente realizou um amplo estudo com 17 mil questionários confidenciais em que adultos ajudavam a identificar como o seu estado mental no momento da pesquisa estava vinculado a situações traumáticas da infância. Assim surgiu o Ace Study (Adverse Childhood Experiences, ou experiências adversas na infância), que serviria como base para a Pirâmide Aces, esquema que mostra como a traumatização pode levar a vícios, adoecimento e morte precoce. O estudo é largamente utilizado por pesquisadores especialistas do trauma e da traumatização, como a psicóloga  Liana Netto, que nesta entrevista destaca que a violência não é apenas uma causa de transtornos mentais, mas em grande medida é uma expressão desses transtornos. Doutora em Medicina e Saúde pela Ufba, Liana defendeu tese sobre a relação entre estresse pós-traumático e a impulsividade.

A psiquiatria aponta que traumas da infância podem levar, na fase adulta, tanto à dependência emocional quanto à evitação de contatos íntimos. Como funcionam esses mecanismos?

Existem muitos desfechos diante de experiências traumáticas. Nem todo trauma gera traumatização ou desfuncionalidade. Eu gosto sempre de trazer uma palavra em referência a experiências desafiadoras, que é também a mola de propulsão de evolução da vida. Foi o que fez com que a vida saísse da condição de seres unicelulares para a complexidade e diversidade que a gente tem hoje. Quando existe uma situação traumática e não existem recursos para ir além da experiência, quando existe uma fixação na traumatização, muitos resultados podem acontecer. Alguns deles são muito bem aceitos na sociedade, como uma personalidade perfeccionista, excesso de trabalho, fazer muitas coisas, comprar muitas coisas, desconexão, incapacidade de estabelecer vínculos seguros, um retraimento. Comportamentos compulsivos podem ser consequências também. De um modo geral, a psiquiatria vai dividir toda essa grande variedade de comportamentos em experiências traumáticas. Podemos dizer também que o trauma está conectado com todos os tipos de transtornos mentais, não só o característico transtorno de estresse pós-traumático. A gente tem desde os estressores mais cotidianos que geram transtornos de ansiedade – como dificuldades financeiras, fobias, transtornos de ansiedade generalizada – mas  o trauma está ligado também a depressões, a compulsões e a dependências. De um modo geral, a psiquiatria vai fazer duas grandes categorizações de transtornos: os internalizantes, formas de lidar com a carga estressora traumática disfuncional, desconectando-se do ambiente, do que existe nas relações, e  vamos ter aí depressão, ansiedade e compulsões. Já os transtornos de externalização são transtornos que vertem para fora a carga de estresse pós-traumático. Podemos ver uma questão curiosa quanto à traumatização: de um modo geral, fazemos uma correlação entre a violência que gera como consequência a traumatização. Mas a violência é uma consequência também da traumatização. Uma forma de perpetuar, seja em uma cadeia transgeracional, seja em ambientes profissionais com extrema competição e assédios, são formas de perpetuação de uma cadeia, nas duas acepções da palavra, cadeia no sentido de elo e cadeia no sentido de aprisionamento.

Então, podemos dizer que, em muitos casos, as pessoas são violentas porque são traumatizadas.

Exatamente.

O médico e psicólogo americano Peter Levine escreveu que no reino animal não há esse peso do trauma como na humanidade, que é regida por  questões psicológicas. Até que ponto a cultura interfere na formação do trauma? Ou seja, noções de abandono, maltrato e negligência talvez sejam diferentes, por exemplo, na América Latina e na Europa.

Uma das coisas que Levine chama a atenção é o fato de que nós, humanos, compartilhamos os mesmos sistemas biológicos que os animais selvagens. Não que os animais não fiquem traumatizados, mas os que ficam traumatizados não sobrevivem à selva. Se ele fica traumatizado, entra num estado dissociativo e não consegue sair a tempo, vai ser devorado por um predador e acabou. Mas, de um modo geral, os animais selvagens, quando têm tempo suficiente, têm o mesmo mecanismo de imunidade ao trauma que nós temos. Um mecanismo de liberação do estresse que fica aprisionado no sistema nervoso, se interrompemos o fluxo natural de descarga na nossa fisiologia. Os animais selvagens, em habitat natural, têm isso muito mais disponível. Você vai ver animais traumatizados em zoológicos.

O que é, enfim, um trauma?

A gente tem uma visão romântica de que estresse e trauma são situações extraordinárias. Mas, na melhor das hipóteses, se tudo der certo, nosso destino vai ser envelhecer, adoecer e morrer. E entre o nascimento e a morte a única certeza que temos é que vamos perder pessoas queridas, vivendo o adoecimento e situações de estresse cotidiano. Nossa tarefa para lidar com as experiências traumáticas desafiadoras não é encontrar todas as maneiras de evitá-las, mas é encontrar as maneiras de atravessá-las. E lidar com elas é  criar uma cultura que permita fazer a travessia dessas experiências desafiadoras.

Mas não há uma noção de que, como no reino animal, alguns países têm a cultura de antecipar a autonomia dos filhos, enquanto no Brasil, nas classes médias,  há uma certa proteção? Isso não influi na maneira como uma criança reage a uma experiência adversa?

Eu diria que o mundo moderno não tem muita diferença entre oriente e ocidente, entre Hemisfério Norte e Hemisfério Sul, em relação à capacidade de lidar com os eventos estressores. Mas as primeiras nações, as nações originárias, os povos originários têm muito mais sabedoria na lida com as experiências traumáticas. Não só isso. Eles fazem de experiências essencialmente traumáticas formas de fortalecimento não só da psiquê de um indivíduo, mas uma experiência coletiva de fortalecimento de um povo, de uma tribo, de uma organização coletiva. Muitas vezes, vemos nesses povos originários rituais de iniciação que são potencialmente muito traumáticos. Enfiar a mão numa luva com formigas, cujo veneno cria delírio, alucinação, febre, dor, mas que fazer isso é uma forma de cultivar o espírito guerreiro, e também o espírito colaborador de uma tribo ao saber que eles são maiores do que aquela experiência. Aprender a ficar confortável no desconforto. São todas maneiras muito sábias de lidar com as experiências estressoras ordinárias e cotidianas. Então, não vejo diferença entre as diversas nações modernas, mas sim com os povos originários. E, nesse sentido, é lastimável o que a gente vê das culturas colonialistas, que são as culturas que detêm armas, violência e, portanto, as culturas que perpetuam o ciclo de traumatização, violências, traumatização. A gente continua perpetuando essa violência com os povos originários. Dou aula em muitos países, na América e na Europa, e há aspectos culturais diferentes na educação, mas não vejo diferença no resultado em relação à traumatização pelos processos educacionais. Eu ensino inclusive Experiência Somática e workshops autorais que trabalham com trauma; de modo geral, meu trabalho é focado no trauma. Tanto a violência direta quanto a negligência criam formas importantes de traumatização. E o que a gente vê, em qualquer povo, seja na América, na Europa, no continente asiático, o que vai de fato trazer saúde para o desenvolvimento humano é a capacidade de se desenvolver num ambiente de vínculos seguros. Vínculos desorganizados são os maiores preditores para transtorno mental. Em um tempo em que todo genoma humano já foi codificado, podemos dizer que alguns transtornos mentais são altamente herdáveis. Por exemplo, o Transtorno Obsessivo Compulsivo. Mas você não tem um gene que seja óbvio como na Síndrome de Down. Existem todos os fatores epigenéticos que são colaboradores aos fatores genéticos e, dentro dos fatores epigenéticos, o padrão de vínculo é o preditor mais consistente para falar sobre saúde mental ou adoecimento mental. O que podemos dizer é que, em termos de saúde mental, o que a gente precisa se ocupar não é se você está numa cultura matriarcal, como a latina, que enfatiza mais a conexão e estende o vínculo de dependência ou interdependência na relação com a criança, ou os vínculos europeus que enfatizam uma autonomia mais precoce. Isso não está associado a um preditor de saúde mental. O que está associado é como os pais são capazes de oferecer uma base segura para que os filhos internalizem e, a partir disso, sejam capazes de lidar com estressores traumáticos inevitáveis de uma maneira que não os faça se fixarem nos traumas, mas ofereça recurso para ir além dos traumas, criando imunidade e crescimento pós-traumático.

A gente pode considerar a Pirâmide Aces um modelo matemático em termos de predição de traumatizações?

Estatístico. É um aspecto da matemática que nos ajuda a criar previsibilidade através de relações de probabilidade. Os estudos de experiências adversas na infância são muito consistentes. É um conceito muito explorado por Gabor Maté [autor e médico húngaro-canadense], que vem se referindo a ele mais recentemente. Hoje há estudos muitos consistentes sobre os Aces. Quanto maior a quantidade dessas referências de estressores ao longo do desenvolvimento, maior a chance de se desenvolver algum transtorno mental. Uma relação probabilística direta.  

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