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“Temos uma cidade que não é pensada para velhos"

Psicólogo fala sobre os danos causados pelo etarismo, estereótipo de que há coisas específicas para cada fase da vida

Publicado domingo, 12 de junho de 2022 às 00:00 h | Autor: Gilson Jorge
Psicólogo Emanuel Pereira fala sobre a velhice
Psicólogo Emanuel Pereira fala sobre a velhice -

Em meio a bancários, advogados, publicitários e especialistas em Tecnologia da Informação, as duas salas que o psicólogo Emanuel Pereira ocupa em um edifício empresarial da Avenida Tancredo Neves destacam-se. Decoração inspirada no tropicalismo, Gilberto Gil como música ambiente e Transa, nome de um dos mais elogiados discos de Caetano Veloso, emprestando seu nome para uma das salas de atendimento do seu Diabasis, Instituto de Humanismo da Bahia.  Em outra sala, de onde se observam, através do vidro, prédios e trânsito de pessoas e veículos se movendo, há dezenas de almofadas espalhadas pelo chão onde até 40 pacientes idosos se deitam simultaneamente em atividades terapêuticas. Nos cabides, peças de roupas produzidas pelo próprio psicólogo, que também é músico, está lançando seu segundo álbum e atende pelo nome artístico de Chico Flores. Para Pereira, que é mestre em serviço social e políticas sociais pela Universidade Complutense de Madri e pela Universidade Federal da Paraíba, ainda lhe falta mais de uma década de vida para que seja idoso. Mas esse potiguar, que na infância batizou seus cães de Baby e Pepeu e imaginou que seria feliz na Bahia ao ver Luiz Caldas cantando e dançando descalço na TV, está se preparando para uma velhice criativa e plena. Algo que incentiva desde agora a seus pacientes da terceira idade. Na próxima quarta-feira, 15, é o Dia Mundial de Conscientização da Violência Contra a Pessoa Idosa e entrevistamos Pereira sobre os danos causados pelo etarismo, o estereótipo de que há coisas específicas para cada fase da vida, e a consequente pressão que família, sociedade, religião e mercado de trabalho exercem sobre quem, aparentemente, não tem mais idade para fazer certas coisas.

A gente imagina que um aposentado com recursos financeiros vá morar numa cidade pequena de praia, curtir muitas viagens. Tipo, já fiz o que tinha que fazer e vou descansar. Você propõe outra coisa, que as pessoas nessa idade se reinventem depois de deixar o mercado de trabalho. Como essa transição pode ser feita?

O neoliberalismo transformou a vida em um negócio e vivemos em função de exercer papéis de produtividade para a venda de algo, para algum serviço. A ideia de uma vida numa dimensão existencial é muito pouco valorizada. A cultura, quando não é algo só mercadológico, tenta recriar essas dimensões da existência pela existência, do prazer estético pelo prazer estético. A gente tem duas dimensões dentro do modelo de produção: a identidade profissional e a identidade pessoal. E a gente passa 25, 30 anos estudando para entrar nessa dimensão dessa função de trabalho e, depois, 30, 35 anos trabalhando. Isso disciplina muito o corpo e a nossa subjetividade.  Quando vem a aposentadoria, você cai em um fosso, um vácuo, porque sua identidade pessoal foi pouquíssimo assistida. Assim como na dinâmica familiar: após a aposentadoria, você muitas vezes se transforma num estorvo, num transtorno, gerando briga, confusão, dificuldades. Isso tudo vai nos trazendo um mal-estar. O que a gente tem trabalhado é a questão das velhices. Não dá para falar em uma velhice só no Brasil, sem falar de classe social, raça, gênero, sexualidade e orientação sexual. Tudo isso vai impactar meu curso de vida na velhice. Precisamos partir desse sujeito concreto, onde está localizado no mundo em termos socioeconômicos e culturais, para mapear o que é o sofrimento e quais são as possibilidades de enfrentamento.  Não há uma regra geral para essa reinvenção.  A velhice na zona rural é muito mais gregária. Porque a pessoa continua convivendo com sua família extensiva, com os amigos. Continua com as atividades produtivas, mas também com o lazer. A vida do velho e da velha na zona rural é muito menos segregada, exceto por essa hecatombe que a gente viveu, a pandemia, em que a velhice sofreu mais e ficou mais vulnerável por ser o grupo com mais risco de morrer, uma vez infectado, e também pelo isolamento social. Nas zonas urbanas, esse isolamento já existe.

O que muda em termos de isolamento dos idosos quando se vive na zona urbana?

Nós temos, por exemplo, uma cidade que não é pensada para velhos e velhas em termos de ergonomia, de mobilidade.  Não dá para pensar o se recriar só na esfera individual se a cidade não favorece, se a família não favorece. É uma cadeia. Tem a dimensão individual que a gente trabalha numa psicoterapia. Mas a própria psicoterapia vai gerando o desejo de autonomia e de independência. E isso de certa forma vai depender de como a família está organizada. Muitas vezes, isso incomoda a família que está tutelando o idoso. Na psicoterapia, ele vai ficando mais empoderado e vai querer mais liberdade de expressão, de trânsito, e a família ameaça retirá-lo da psicoterapia para evitar esse rearranjo na dinâmica familiar.   Trabalhamos com o idoso individualmente essa revisão de personalidade, as memórias mais traumáticas, mais difíceis.  As perdas de amigos, de cônjuges, o mal-estar da aposentadoria, o não-lugar de trabalho, as perdas de poder, de reconhecimento, dos amigos que ficaram no ambiente de trabalho.

O que causa mais danos à saúde mental do idoso? A tutela da família, a perda do mercado de trabalho, a ideia da aproximação da morte?

Eu diria que é uma congregação desagradável de todos esses aspectos, mas tem algo que é estrutural, como o racismo e a homofobia, que é o etarismo. O preconceito estrutural contra essa faixa etária.  O idoso é o mais abalado porque também está no próprio corpo dele. Quando ele se vê envelhecido, perdendo suas capacidades funcionais, o tônus muscular, perdendo sua mobilidade, não pode executar mais as mesmas tarefas. Quando ele percebe que o ambiente é o mesmo, as pessoas são as mesmas, mas ele não consegue mais ocupar o espaço com a mesma desenvoltura, é chocante. No caso das mulheres, esse elemento está presente desde o momento em que ela não pode mais procriar. No caso dos homens, tinha um fantasma muito grande quanto à impotência. Houve uma revolução após o aparecimento do Viagra, dos estimulantes sexuais. E a mulher descobre que há um ressecamento vaginal ao envelhecer, que causa desconforto na relação sexual. Uma política de informação sobre o uso de gel à base de água ajudaria muito.  Isso poderia ser uma política pública, a gente precisa de política pública para enfrentar esse preconceito.  Não é porque eu estou perdendo meu tônus, minha independência funcional, que eu tenha que perder necessariamente minha autonomia. É preciso respeitar o horário que eu quero tomar banho, que roupa eu quero vestir hoje. A família muitas vezes confunde autonomia com independência.  E isso causa muito mal-estar. Quando percebemos que há uma interferência muito grande da família, causando prejuízo à saúde mental, a fazemos um trabalho de educação gerontológica, que é chamar a família e perguntar o que está havendo.

Sobre sexualidade, deve ser difícil para mulheres idosas, que muitas vezes têm questões morais e religiosas, recorrer à medicina e à ciência para melhorar a sua vida sexual. A religião traz esse aspecto positivo de pertencimento a um grupo, mas também tem essa noção de que senhoras dessa idade devem ser respeitáveis e que tratar de sexo nessa faixa etária é sem-vergonhice...

Essa pergunta é muito importante. De fato, a vivência religiosa promove uma experiência comunitária gregária, e isso traz bem-estar. Tem um filósofo que eu leio muito, Martin Buber, autor do livro Eu e Tu, que diz que todo humano quer inscrever-se numa comunidade.  Ansiamos por pertencimento e, na velhice, devido a esse processo de segregação, essa necessidade é maior ainda. Mas, lamentavelmente, algumas instituições mais dogmáticas aproveitam essa motivação de vincular-se a essas experiências religiosas para fortalecer alguns tabus que vêm do machismo estrutural, que tenta limitar as experiências das mulheres e da população LGBT na sua própria sexualidade.  No caso dos velhos, esse limite também ocorre, mas principalmente das mulheres velhas. É um paradoxo que precisa ser compreendido criticamente. Os preceitos religiosos muitas vezes são usados de forma negativa, para manipular essa pessoa e manter essa condição de abstinência sexual, a ideia de pecado e de não poder se reinventar no casamento ou sair de uma situação de violência doméstica e sexual. Alguns segmentos religiosos têm falhado e criado uma calamidade a mais nessa vivência da sexualidade.  O estado é laico. É importante o poder público fazer uma política de saúde, um plano nacional para o idoso, envolvendo todas essas dimensões e quando essas violações ao direito acontecerem, incluindo em instituições religiosas, essas coisas possam ser denunciadas. É importante que não exista somente a igreja como lugar para a vivência comunitária, mas também o mercado, o verdureiro, a padaria. Porque muitas vezes os idosos moram sozinhos e tentamos criar uma rede de informações caso esse idoso passe dois dias sem comprar pão. Os agentes comunitários de saúde precisam ser fortalecidos. Foi uma pena que o Mais Médicos tenha sido alterado. Os agentes comunitários de saúde estavam muito próximos dessa população. O idoso apareceu com uma mancha roxa no braço? Já mapeava. Igual criança na creche. Precisamos criar uma cultura comunitária para dar visibilidade ao idoso, para o caso de que aconteça algo errado isso possa ser denunciado.  A gente teve um retrocesso muito grande em políticas públicas nos últimos anos, depois do golpe de 2016.

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