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Kiss e Fly: parecer judicial barra projeto de cobrança no aeroporto
Entenda as polêmicas do sistema Kiss & Fly no Aeroporto de Salvador, os pareceres jurídicos e técnicos contrários, e críticas de passageiros e taxista

Por Andrêzza Moura

O serviço Kiss & Fly – em português, “Beijo e Voe” –, que consiste em um sistema de controle de acesso com cobrança para veículos nas áreas de embarque e desembarque do Aeroporto Internacional de Salvador, está cercado de controvérsias. A concessionária Vinci Airports, responsável pela administração do terminal, pretende implementar o modelo a partir de janeiro de 2026. A proposta prevê um tempo de permanência gratuita de até 10 minutos no meio-fio e, após esse período, a cobrança de uma taxa dos motoristas.
No entanto, um parecer jurídico aponta que a iniciativa não possui respaldo legal nem autorização da prefeitura e levanta questionamentos sobre a legalidade da cobrança e da instalação das cancelas em espaço público.
Além da ausência de amparo legal, análises técnicas também questionam a viabilidade do sistema e seus possíveis impactos. A medida é criticada por limitar o acesso a uma área que historicamente é de livre circulação, o que pode gerar transtornos a passageiros e familiares em momentos de chegada e partida. A cobrança, mesmo que após um período de carência, levanta debate sobre o uso comercial de áreas públicas e o direito de ir e vir dos cidadãos.
Análise do processo e parecer técnico
A Concessionária apresentou documentos como cronograma de obras, plano de implantação e alvará de autorização nº 28902, expedido pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Sedur). Contudo, a Gerência de Planejamento e Projetos de Trânsito emitiu o Parecer Técnico nº 131.238-2025 recomendando o indeferimento do pleito devido à incompletude técnica e à ausência de regulamentação tarifária para a via pública em questão.
A Assessoria Jurídica do município fundamentou sua análise destacando a ausência de previsão contratual ou legal para a instalação de mecanismos de controle de acesso com fins de tarifação no aeroporto, segundo o parecer.
“Não consta dos autos, sequer, cópia do contrato de concessão do aeroporto, tampouco qualquer cláusula que aponte previsão expressa de delegação ou autorização para implantação de controle de acesso (por meio de cancelas) ou exploração econômica de via pública mediante tarifação vinculada ao uso do meio-fio destinado ao embarque e desembarque de passageiros”, diz um techo do parecer que o Portal A TARDE teve acesso com exclusividade.
O parecer cita ainda o art. 1º da Resolução CONTRAN nº 482/2014, que determina que vias públicas abertas à circulação são reguladas exclusivamente pelo município, cabendo a este o controle do tráfego e restrições. Assim, não há autorização para instalação de cancelas com cobrança tarifada, o que, na visão da Assessoria, configura afronta aos princípios da legalidade, supremacia do interesse público, eficiência e razoabilidade.
Por fim, o documento conclui que “Diante de todo o exposto, corroborando com o posicionamento da Gerência de Planejamento e Projetos de Trânsito adotado no Parecer Técnico nº 131.238-2025, esta Assessoria Jurídica opina pela impossibilidade jurídica da instalação de cancelas ou de qualquer mecanismo de controle tarifado de acesso à via pública de uso coletivo situada no entorno do Aeroporto de Salvador, seja por ausência de respaldo legal e contratual, seja pela inexistência de autorização expressa do Município de Salvador”.
Na conclusão, ainda é recomendado o indeferimento do pedido e o encaminhamento do processo à Procuradoria Geral do Município para providências relativas à tutela do interesse público.
Modelo semelhante em Fortaleza sob investigação
Enquanto o projeto em Salvador ainda está em análise, o sistema de controle e tarifação por tempo de permanência nas áreas de embarque e desembarque do Aeroporto Internacional de Fortaleza, administrado pela Fraport Brasil, tem sido alvo de reclamações e investigações de órgãos públicos.
Desde que foi implementado o sistema que cobra R$ 20 a cada 10 minutos excedidos no meio-fio, passageiros e entidades vêm questionando a legalidade da medida. A Ordem dos Advogados do Brasil- Seção Ceará (OAB-CE) -, protocolou requerimento para esclarecer a instalação das cancelas e a cobrança.
O presidente da OAB-CE, Erinaldo Dantas, declarou no site do órgão: "Já encaminhamos o documento e vamos aguardar os esclarecimentos sobre a cobrança. Caso a Ordem entenda que a conduta da Fraport não esteja adequada, iremos tomar outras medidas, inclusive como o ajuizamento de uma ação civil pública".
Já o programa Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor (DECON), do Ministério Público do Ceará, instaurou Procedimento Administrativo para apurar possíveis infrações ao Código de Defesa do Consumidor (CDC) e destacando que “a cobrança implementada pode violar os artigos 4º, inciso I; 6º, incisos III e IV; e 39, incisos V, X e XII, todos do Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal nº 8.078/1990), já que possivelmente não está levando em conta a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo e não foram divulgados, de forma clara, os valores referentes ao serviço".
O Procon Fortaleza também havia notificado a concessionária e exigiu esclarecimento, sob pena de multa superior a R$ 15 milhões.
Repercussões em Salvador
No Aeroporto de Salvador, a proposta do Kiss & Fly já gera reclamações mesmo sem estar em operação. A autônoma Zuleide Tavares, 45 anos, que reside no Rio de Janeiro e visita Salvador regularmente, relatou sua insatisfação. Ela é soteropolitana, mas mora na capital fluminense, há 23.

“Quem foi me buscar no aeroporto foi o marido de minha prima, e ele não pôde ficar ali por causa da fiscalização. Ele ficou dando volta, demorou mais de 10 minutos. Acho um absurdo essa cobrança, porque a gente já paga caro para viajar e ainda ter que pagar para esperar. Tem pessoas com comorbidades que andam devagar e não podem sair rápido. Também acho errado o Uber não poder ficar no mesmo lugar que o táxi”, reclama ela
Outro que demonstra preocupação com a implementação do serviço é Denis Paim, presidente da Associação Geral dos Taxistas (AGT) de Salvador. Ele criticou a falta de diálogo e o impacto da medida para passageiros e para a categoria.

“Na verdade, no início do ano, eles começaram a informar sobre essa questão. Eu fiquei sabendo, como presidente da Associação Geral dos Taxistas, um representante [da categoria], estive lá e consegui fazer uma reunião com eles [represententes da concessionária], onde eles já tinham decidido tudo isso. Eu acho que isso é um cúmulo do absurdo, isso prejudica a nossa categoria, porque hoje nós temos que embarcar e desembarcar o passageiro", lamentou Paim.
Ele ainda denunciou a retirada do espaço destinado aos taxistas no aeroporto e classificou a instalação da cancela como uma medida arrecadatória que prejudica taxistas e passageiros.
“Antes tinha um espaço que os taxistas botavam o carro, hoje não tem mais, a gente não tem mais lugar de botar os carros. Nós estamos indignados porque fizeram nós de cachorro, sem nenhum aviso prévio. E essa cancela vai atrapalhar também a população que vai embarcar ou desembarcar os seus antes queridos no aeroporto e vai ter dificuldade. Dez minutos é muito pouco, não dá para nada", avaliou o presidente o tempo de tolerância para permanecer parado no meio-fio dos setores de embarque e desembarque do aeroporto.
O que diz a Vinci Airports Salvador
Questionado sobre o parecer juridíco que indefere o Kiss e Fly, o CEO da Vinci Airports, Júlio Ribas, afirmou que o projeto está sendo conduzido dentro dos parâmetros legais, com o devido conhecimento e envolvimento dos órgãos competentes, tanto federais, quanto municipais. Segundo ele, “Não temos nenhuma ação judicial contra, mesmo porque está absolutamente dentro do direito, é uma concessão federal regulada pela ANAC, a Agência Nacional de Direção Civil”.

Ribas também destacou que houve ampla interlocução com a Prefeitura de Salvador, com o objetivo de garantir que o projeto estivesse alinhado às exigências locais. “O processo foi todo apresentado nos diferentes instantes também da prefeitura, Semob, Sedur, Secop, Sucop, Seinfra, Transsalvador para a gente também se acomodar à parte que lhe toca”, afirmou o CEO.
Diante de manifestações de alguns passageiros a respeito do Kiss & Fly Ribas esclareceu que o projeto ainda está em fase inicial de divulgação e que muitos dos comentários negativos decorrem da falta de conhecimento sobre a proposta. “O projeto ainda não foi amplamente divulgado, a gente está divulgando o melhor que pode, pouco a pouco, mas acho que as pessoas, inclusive, nem sabem necessariamente do que se trata, a ponto de um passageiro poder dizer que não gosta, não tem como ele não gostar, inclusive, de algo que não existe e não tem conhecimento”, avaliou.
Ele também reforçou que a concessionária tem mantido um diálogo constante com os taxistas e demais operadores de transporte terrestre que atuam no entorno do aeroporto, buscando garantir que todos os envolvidos sejam ouvidos durante o processo de implementação da nova dinâmica viária.
“Com os taxistas a gente tem mantido um canal de conversação direto, tanto com as cooperativas, que têm contrato com o aeroporto e operam lá e têm as suas vagas exigidas, como os táxis comuns, que também têm um espaço para permenecerem lá, e com as vans, tanto as que têm contrato, como as que não têm.Ontem mesmo [quarta-feira, 18] tivemos uma reunião com a Astteba [Associação dos transportadores turísticos e fretamentos do estado da Bahia], que é a associação do pessoal que faz os transportes de vans, e muito positiva”, esclareceu.
Por fim, o CEO da Vinci Airports destacou que o Kiss e Fly não tem como finalidade gerar lucro ou criar barreiras para os usuários, mas sim promover organização, respeito ao espaço coletivo e civilidade nas operações de embarque e desembarque no Aeroporto Internacional de Salvador.
“É um projeto de ordenamento, não é um projeto de receita financeira, porque o objetivo é que ninguém passe do tempo. Você nunca vai recuperar um investimento de 6 milhões de reais. Não importa quanto você cobre, você nunca vai recuperar. Não é essa a ideia. A questão do pagamento é um estímulo à pessoa não se educar", assegurou Ribas.
Posicionamento do Procon Bahia
O advogado especialista em direito do consumidor e Diretor de Fiscalização do Procon Bahia, Iratan Vilas Boas, membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/BA, ressaltou o rigor na fiscalização caso o serviço seja implementado no aeroporto da capital baiana.

“Caso esse serviço seja implementado aqui no estado, os fornecedores serão amplamente fiscalizados, assim como acontece nos demais segmentos. Vamos verificar possíveis infrações às normas consumeristas que tratam, desde a falta de informação clara e precisa; vendas casadas, vantagem manifestamente excessiva no tocante aos valores cobrados até as permissões para explorar os serviços que é dada pelos órgãos competentes.
Vilas Boas ainda ressaltou não existir uma legislação própria para o serviço que será implantado. No entato, o Procon fiscalizará com base nas leis previstas no Código de Defesa do Consumidor (CDC).
"Não temos uma legislação específica que trate do assunto mas, por se tratar de uma relação de consumo, aplicaremos as regras estabelecidas no Código de Defesa do Consumidor. Todos os serviços que tragam onerosidade excessiva aos consumidores serão rechaçados pelos Procon Bahia e entidades de defesa do consumidor”, conclui ele.
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Esclarecimentos da Semob
O Portal A TARDE, procurou o secretário de Mobilidade da Prefeitura de Salvador (Semob), Pablo Souza, para saber qual a participação do órgão na implantação do sistema Kiss e Fly, já que obras de requalificação no entorno do aeroporto estão sendo desenvolvidas em parceria com a Vinci Airports.
“Algumas das informações mencionadas não são de responsabilidade exclusiva da Semob. Questões relacionadas à autorização de tempo, estacionamento e cobranças similares são de competência da Sedur, e não da Semob. Além disso, algumas questões também são de responsabilidade do aeroporto [Vinci].”
Souza ficou de responder outros questionamentos, mas até o fechamento dessa reportagem não havia dado retorno. O Portal A TARDE também buscou respostas da Sedur, Ministério Público do Estado da Bahia (MPBA) e da Coordenação de Táxis e Transportes Especiais (Cotae), sem sucesso.
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