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POLÍTICA

A face oculta da PEC Kamikaze

Orçamento secreto patrocina apoio parlamentar para aprovar a proposta e une políticos da direita à esquerda

Por Dante Nascimento

09/07/2022 - 6:00 h | Atualizada em 09/07/2022 - 11:44
Plenário do Senado Federal durante sessão que aprovou a PEC kamikaze
Plenário do Senado Federal durante sessão que aprovou a PEC kamikaze -

A tramitação da chamada PEC Kamikaze no Congresso Nacional tem sido marcada por um ritmo avassalador. Depois de aprovada no Senado, na semana passada, em dois turnos, num único dia, a Proposta de Emenda à Constituição defendida pelo governo Bolsonaro, que libera R$ 41,2 bilhões em programas sociais e benefícios para algumas categorias, passou com facilidade na Comissão Especial da Câmara, nesta quinta-feira, 7.

Uma das sessões para agilizar a votação teve duração de um minuto e a proposta só não foi ao plenário por decisão do presidente da Casa, deputado Arthur Lira, que considerou o quórum baixo.

A agilidade nas votações é acompanhada pela capacidade da proposta em unir parlamentares de diferentes correntes políticas, da direita à esquerda. Menos por convicção e mais por medo de se indispor com o eleitor, até mesmo a oposição não faz objeção à PEC, pelo menos no voto. Dos 81 senadores, apenas um, o senador José Serra (PSDB), foi contra a proposta. Na Comissão Especial da Câmara, somente um entre os 37 deputados foi contrário.

Mas, como uma PEC que chegou a ser comparada ao suicídio pelo ministro Paulo Guedes, por causa dos efeitos fiscais devastadores, consegue avançar com tamanha facilidade e unanimidade no Congresso Nacional? E quais, de fato, são as consequências que provocam ao país? A reportagem de A TARDE ouviu especialistas em busca de respostas.

“A PEC reflete uma peça oculta, que é o orçamento secreto”, diz Marcelo Neri, presidente da FGV Social. Nas sombras da articulação política, segundo o economista, as emendas de relator, que não identificam os parlamentares beneficiados com a liberação dos recursos, foram determinantes para garantir o apoio necessário ao avanço da proposta no Congresso.

“Você consegue a aprovação de uma PEC, que supostamente é difícil de aprovar, porque precisa de tempo, sem discussão e sem amadurecimento. Políticos em ano de eleição são mais sensíveis, mas quando essa sensibilidade deve ser estimulada por um orçamento secreto, quando os políticos podem aumentar o seu quinhão no orçamento de uma forma não transparente, é o problema ao quadrado”, alerta.

De acordo com a Comissão Mista do Orçamento, está autorizado o uso de R$ 16,5 bilhões em emendas de relator este ano. Segundo a Associação Contas Abertas, que desenvolve ações voltadas para o acompanhamento e fiscalização do orçamento público, entre janeiro e julho já foram empenhados R$ 7,7 bilhões. Mas ainda há tempo pela frente. A votação da PEC Kamikaze no plenário da Câmara Federal está prevista para a próxima terça-feira, 12.

Na avaliação de Gil Castello Branco, presidente da Associação, o meio político deve continuar sendo abastecido com recursos do orçamento secreto, inclusive durante as eleições. “É uma arma eleitoral muito forte. Nós sabemos que essas emendas de relator são distribuídas sem qualquer critério técnico ou parâmetros socioeconômicos e têm sido liberadas a esmo, apenas como uma forma de agradar ou cooptar parlamentares”, avalia.

União e estratégia política

A ágil votação da PEC Kamikaze no Congresso Nacional protagonizou um fenômeno raro na cena política, a unanimidade, capaz de aproximar deputados e senadores de correntes ideológicas tão diferentes.

“Como é um ano eleitoral e uma pauta muito popular, obviamente que, independentemente do espectro ideológico, a gente acabou tendo políticos que apoiaram a proposta nesse momento, pela sua urgência, e também é uma forma de demarcar eleitoralmente que não ficaram contra a proposta”, analisa o cientista político Cláudio André de Souza.

Para ele, os partidos de oposição ao governo federal adotaram um posicionamento estratégico. “Embora se saiba que seja uma medida que pode alavancar o apoio eleitoral a Bolsonaro, há um cálculo político por parte da esquerda de que, de alguma forma, precisa apoiar esse projeto. Em um ano eleitoral isso é fundamental, não ficar contra uma proposta que destina mais recursos financeiros na conta de milhares de famílias”, explica.

Jaques Wagner (PT), Otto Alencar e Ângelo Coronel, ambos do PSD, que formam a bancada da Bahia no Senado, votaram unidos pela aprovação da proposta.

“O foco é socorrer as famílias que estão passando dificuldades, em consequência de uma política econômica desastrosa. Foi pensando nisso que a bancada do nosso partido votou a favor, pois quem tem fome tem pressa e não pode mais esperar”, explicou Jaques Wagner à reportagem por meio da sua assessoria. Otto Alencar e Ângelo Coronel não responderam o porquê do voto favorável.

Prejuízos fiscais e sociais

A justificativa do meio político de que a PEC combate a fome não se sustenta entre os especialistas ouvidos pela reportagem. Para eles, o pagamento de qualquer auxílio social, como incluído na proposta do governo, provoca uma queda temporária e ilusória da pobreza.

O recente estudo Mapa da Nova Pobreza, elaborado pela FGV Social, por exemplo, revela que o auxílio emergencial instituído durante a pandemia, em 2020, reduziu quase que instantaneamente o número de pessoas pobres, de 65 milhões para 42 milhões. Mas, quando o benefício foi suspenso, em janeiro de 2021, 71,9 milhões de brasileiros passaram a viver em situação de pobreza, superando a marca anterior.

O presidente da FGV Social entende que medidas como a PEC Kamikaze têm efeito quase zero no combate à desigualdade. “Do ponto de vista social, o que está se propondo fazer é uma montanha russa, como foi a montanha russa do auxílio emergencial. E ela tem boas notícias, porque a pobreza de fato cai, mas a má notícia é que ela volta depois do auxílio. Então, em janeiro de 2023, quando essas medidas deixarem de operar, o auxílio vai regredir aos níveis mais baixos, já com a inflação corroendo até lá o poder de compra da população. Você vai ter um nível de pobreza alto”, explica Marcelo Neri.

Os números mostram que, para parte da população mais pobre, a PEC Kamikaze pode representar um alívio imediato, mas também prejuízo no futuro. Neri aponta que o gasto de R$ 41,2 bilhões previsto na proposta acaba por desregular as contas públicas, provocando retração de investimentos, e, consequentemente, o aumento da inflação e a desvalorização da moeda. E aponta que sem investimentos, não há geração de empregos.

“Tem uma regra de direção básica, que é o seguinte: você não pisa no acelerador e no freio do carro ao mesmo tempo. O Banco Central está pisando no freio do juros, por boas razões, a inflação está alta. E o que se está fazendo agora é pisar no acelerador fiscal, injetando recursos. Então, você tem um conflito de medidas. Assim, o combate à inflação fica inviabilizado”, detalha.

A PEC Kamikaze também pode aumentar a insegurança jurídica e a desconfiança do mercado ao autorizar o estado de emergência, que, normalmente, é previsto em casos de catástrofes naturais ou guerra. Para o economista Gil Castello Branco, esse mecanismo possibilita driblar as amarras fiscais.

“Torna sem efeito aquele limite do teto de gastos. Quebra-se a regra de ouro, de que o governo não pode se endividar para pagar despesas de custeio, como previsto na Constituição. É como uma família que pega dinheiro no banco a juros altos para pagar conta de luz. Em pouco tempo entra em estado de completa insolvência”, explica.

Os gastos bilionários previstos na proposta suscitam a pergunta inevitável: como essa conta será paga? Segundo Castello Branco, com endividamento. “O país emite títulos públicos no mercado, que são comprados por empresas e pessoas físicas. O governo promete pagar e o país se endivida pra fazer frente às despesas”.

Para Marcelo Neri, com as regras mais fluidas, surge um novo oportunismo político. “Isso é muito ruim politicamente para as instituições, ruim para a política social e ruim para a política econômica. Se ela está passando [a PEC], alguém está se beneficiando com isso. Mas certamente não é a economia, não é a população e não são as instituições, talvez sejam alguns atores políticos”.

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