VOZES SILENCIADAS
Guerra por terra: mortes de defensores de direitos ganham força na Bahia
Estado ocupa o 2º lugar no ranking nacional de violência contra ativistas de direitos humanos
Por Andrêzza Moura

Com 10 mortes registradas em apenas dois anos, a Bahia se tornou o estado mais violento do país para defensoras e defensores de direitos humanos, com uma concentração de 18% dos homicídios desse tipo no país, segundo dados do relatório 'Na Linha de Frente'. O levantamento produzido pelas organizações Justiça Global e Terra de Direitos denuncia o agravamento da violência contra quem dedica a vida à luta por justiça e pela garantia de direitos fundamentais em território nacional.
Além dos homicídios, o estado ocupa o segundo lugar no ranking nacional de violência contra defensoras e defensores, com 50 ocorrências registradas, o que corresponde a 10,3% dos casos nacionais analisados entre 2023 e 2024. Nesse contexto, a Bahia fica atrás apenas do Pará.
A maioria das vítimas baianas era indígena ou quilombola. Entre os casos mais emblemáticos estão os assassinatos da pajé Maria Fátima Muniz, a Nega Pataxó, liderança espiritual e professora indígena, morta a tiros por fazendeiros, em janeiro de 2024, e da ialorixá e liderança quilombola Maria Bernadete Pacífico, mais conhecida como Mãe Bernadete, executada com 25 tiros dentro de casa, em 2023, no Quilombo Pitanga de Palmares, em Simões Filho, Região Metropolitana de Salvador.

Segundo Sandra Carvalho, cofundadora e coordenadora do Programa de Proteção de Defensores (as) de Direitos Humanos e da Democracia da Justiça Global, "os casos na Bahia estão fortemente relacionados à expansão da atuação do narcotráfico nos territórios indígenas e quilombolas e a atuação de milícias rurais, como é o caso do Movimento Invasão Zero, estando fortemente relacionados aos conflitos agrários".
O estudo aponta também a participação de policiais militares em algumas ações criminosas. Sandra chama atenção ainda para a vulnerabilidade dessas áreas.
Importante destacar que a atuação criminosa desses grupos encontra espaço nesses territórios que carecem de regularização fundiária, demarcação de territórios indígenas e titulação de territórios quilombolas,

CIDH e ONU
Diante dos números, a Justiça Global enviou recomendações à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e às Nações Unidas [Organização das Nações Unidas - ONU), solicitando investigação e o desmonte de milícias armadas atuantes em áreas de conflito no Brasil.
Para Sandra Carvalho, o cenário atual se agrava com a aprovação do Marco Temporal, que enfraquece os direitos territoriais dos povos indígenas, especialmente, aqueles que estão estão em processo de retomada de seus territórios tradicionais.
O Marco Temporal - Lei n.º 14.701/2023 -, aprovado em 2023, estabelece que a demarcação de terras indígenas só é válida para áreas ocupadas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, desconsiderando expulsões e deslocamentos históricos. A medida é vista por organizações de direitos humanos como uma ameaça direta à proteção dos povos originários.
Outros dados
Entre 2023 e 2024, o estudo 'Na Linha de Frente' identificou 486 casos de violência contra defensoras e defensores de direitos humanos em todo o Brasil. Cerca de 87% das vítimas estavam envolvidas com a defesa da terra, do território e do meio ambiente. Mais da metade dos crimes ocorreram dentro do território ou residência das vítimas, e 67% aconteceram em áreas rurais, revelando a vulnerabilidade dos que atuam em zonas de conflito fundiário.
Diante dessa realidade, Sandra Carvalho destaca que o avanço da violência está diretamente ligado ao enfraquecimento das políticas públicas e à adoção de medidas que colocam em risco os direitos conquistados, como o Marco Temporal. Para ela, o enfrentamento dessa situação exige uma resposta coordenada do poder público.
"Para enfrentar esse cenário, é necessário medidas articuladas em diversas instâncias do Estado, multidisciplinares e interministeriais. É preciso enfrentar as organizações criminosas, implementar políticas estruturantes como a demarcação e titulação das terras e territórios, além de fortalecer as políticas de proteção às pessoas que defendem seus direitos nos territórios", finaliza a defensora.
Nega Pataxó
Nega Pataxó, que era pajé e liderança do povo indígena Pataxó Hã Hã Hãe, foi brutalmente assassinada, em 21 de janeiro de 2024, durante um ataque de fazendeiros e comerciantes, na Fazenda Inhuma, na Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu, na região de Potiraguá, no sul da Bahia. O irmão dela, o cacique Nailton Muniz também foi baleado na mesma ação.

Os indígenas haviam ocupado a área no dia anterior, por considerar ser território tradicional. Os suspeitos cercaram o local com dezenas de caminhonetes e tentaram recuperar a propriedade à força e com uso de violência, sem decisão judicial.
O caso causou repercussão entre comunidades indígenas e entidades de defesa dos direitos humanos. As investigações apontam possível relação com disputas fundiárias e a luta contra invasões ilegais, evidenciando a vulnerabilidade dos povos originários na região.
José Eugênio Fernandes Amoedo, 21 anos, filho de um dos fazendeiros, foi preso em flagrante, horas após o crime, apontado como sendo o autor dos disparos que mataram a liderança indígena. Ele foi liberado após pagar fiança. Um policial militar aposentado, que não teve o nome revelado, também foi detido. Ele alegou ter agido em legítima defesa. O caso está sendo apurado.
No último dia 12 de agosto, a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília, manteve em liberdade o acusado pelo assassinato de Nega Pataxó até julgamento pelo Júri Popular.
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Mãe Bernadete
A líder quilombola Maria Bernadete Pacífico, a Mãe Bernadete, foi assassinada em 17 de agosto de 2023 dentro de sua residência, no Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador. Homens armados invadiram a casa e a executaram com cerca de 25 tiros, na frente dos netos.
A motivação do crime está ligada à luta da ialorixá contra a expansão do tráfico de drogas e construções ilegais nas terras quilombolas da região. A violência gerou grande repercussão nacional e mobilizou órgãos de direitos humanos e a Organização da Nações Unidas (ONU), que cobraram uma investigação rápida e transparente.
Seis pessoas foram indiciadas pela morte de Mãe Bernadete, entre elas dois executores, dois mandantes e dois envolvidos que facilitaram o crime. Até julho de 2024, três suspeitos estavam presos, enquanto outros dois permaneciam foragidos.

O filho de Mãe Bernadete, Flávio Gabriel Pacifico dos Santos, Binho do Quilombo, também foi assassinado em um contexto de violência ligado à disputa por terras quilombolas. Ele foi executado a tiros em setembro de 2017, também no Quilombo Pitanga dos Palmares. O caso dele ainda segue sob investigação.
O Portal A TARDE procurou a Polícia Civil para saber mais detalhes sobre as investigações dos crimes, mas, até o fechamento dessa matéria, não obteve retorno.
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