MAIOR DE 18?
“Retrocesso”, diz especialista sobre músicas com classificação indicativa
Novo PL apresentado pelo senador Beto Martins (PL-SC) visa adotar medida semelhante à aplicada em filmes
Por Edvaldo Sales
A indústria musical brasileira pode passar por uma mudança em breve e o motivo pelo qual isso pode acontecer dividiu opiniões. A polêmica teve início depois que um novo projeto de lei apresentado pelo senador Beto Martins (PL-SC) veio à tona. A proposta visa implementar uma classificação indicativa para músicas de circulação pública, semelhante ao modelo já aplicado a filmes e programas de televisão.
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O Projeto de Lei 3.671/2024 propõe mudanças no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), estabelecendo que um órgão oficial seja encarregado de avaliar o conteúdo das músicas. A classificação não poderá ser feita pelos próprios produtores ou distribuidores, a fim de garantir maior imparcialidade. Atualmente, o PL aguarda designação de relator na Comissão de Direitos Humanos (CDH) e, em seguida, passará pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e pela Comissão de Educação (CE), esta última, responsável pela decisão final.
O vocalista da banda baiana Lúgubra, Leonardo Leão, disse, em entrevista ao Portal A TARDE, que, a princípio, a proposta pode parecer interessante, mas ele não enxerga uma maneira de ela ser aplicada ou regulamentada objetivamente. Ele pontuou que o consumo de produtos audiovisuais “já são regulamentados para uma classificação indicativa de idade, mas isso só funciona em atividades presenciais, como salas de projeção e teatros”.
“Na TV aberta há especificação de horários para apresentação e aparece a classificação no início da transmissão de um produto, de uma obra audiovisual, mas a maioria das famílias nem liga para isso. E essa situação não existe, na prática, quando se trata de transmissões por streaming, quando as pessoas podem ver qualquer coisa em qualquer horário. Daí, cabe à família ou responsáveis orientar as crianças e adolescentes ou usar mecanismos de bloqueio nas plataformas”, disse.
Questionado sobre a possibilidade de o projeto afetar o processo de composição e a distribuição de canções, Leão falou que a música, como toda forma de expressão artística e cultural, não tem barreiras. “A gente já tem a Lei Antibaixaria, que, na teoria, inibe que os gestores públicos invistam dinheiro público contratando bandas e artistas com músicas abordando temas sexistas, misóginos, entre outras, mas, na prática, não surtiu muito efeito. Sempre há subterfúgios, como frases com duplo sentido e metáforas”.
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O produtor cultural baiano Rogério Brito, conhecido como BigBross, tem uma visão semelhante à do colega e levanta outro ponto. De acordo com ele, a maioria dos jovens vai querer escutar só porque está proibido. “Vai aumentar muito mais a curiosidade de quem queria ouvir do que impedir alguém de ouvir a música em si”, argumentou.
Quem também opinou sobre o assunto foi o forrozeiro Del Feliz. O artista disse que não saberia dizer se esse é o melhor caminho. Ele enfatizou que falar da classificação indicativa de uma música no ambiente público não traz a certeza de que as crianças não vão ouvir. “[...] Eu não sei como vai funcionar. Importante que isso esteja mexendo com o imaginário das pessoas e instigando elas a debaterem o assunto. Eu acho que esse é o ponto mais importante”, avaliou.
“Grande retrocesso”
Segundo o PL, a análise das músicas será baseada em três critérios principais: o risco de provocar depressão e ansiedade, a presença de violência ou sexualidade explícita, e o estímulo a comportamentos antissociais. Além disso, o projeto estabelece que a classificação indicativa deverá ser informada antes da execução de qualquer música em espaços públicos.
Para o senador Beto Martins, o impacto das músicas no público jovem é comparável ao de outros meios de entretenimento que já são regulados por sistemas de classificação. Ele argumenta que a música tem um papel significativo na formação emocional dos indivíduos, especialmente entre os mais jovens.
Leonardo Leão analisou, no entanto, que o “grande problema é que não temos como definir quem avalia cada caso. Como definir o que traz risco de “provocar depressão e ansiedade”? A equipe de avaliadores terá quantos psicólogos e psiquiatras? De quantas e quais correntes científicas? Quem determinará o que é um comportamento antissocial? Falar contra a sociedade humana, o capitalismo e a religião é ser antissocial?”
Já BigBross classificou como um “grande retrocesso” atribuir um comportamento depressivo de jovens, adolescentes e adultos aos artistas e às letras. “Isso é muito mais profundo. Elas são muito mais afetadas pelo cotidiano e pela condição socioeconômica. Isso sim causa depressão”, disparou.
A música, muitas vezes, é a fuga disso tudo, onde a pessoa se encontra. Eu acho que é uma lei falha, obsoleta, que não tem futuro e que vai gerar muita polêmica
Apesar de acreditar que qualquer tipo de controle nesse sentido não será fácil, Del Feliz vai no sentido contrário de Leão e BigBross. "Eu entendo que seja positivo que haja a iniciativa de alguém se preocupar em tentar diminuir essa chuva de exposição às crianças, às mulheres, ou até mesmo, para alguns adultos. Pensar e discutir esse assunto é muito importante”.
Alguns conteúdos que hoje já são considerados normais nas músicas assustam
Para Del, existem “muitas músicas” atualmente que “provocam ansiedade e depressão, e que exploram sexualidade explícita, inclusive de crianças”. O cantor cita ainda a ostentação que, para ele, passou a ser “corriqueira” nas canções. “Não bastasse isso, tem a alusão ao uso de drogas e à violência”, continuou.
É censura?
Conforme o senador que idealizou o projeto, a classificação não se trata de censura, mas de uma medida de proteção e orientação para pais e responsáveis sobre o conteúdo que seus filhos estão consumindo. A proposta, segundo ele, busca conscientizar a sociedade sobre o impacto que a música pode ter no desenvolvimento emocional e comportamental das novas gerações.
Mas não é dessa maneira que alguns especialistas enxergam, entre eles, o membro da Academia Brasileira de Música (ABM) Paulo Costa Lima, o qual afirmou que preocupa bastante a forma como uma “determinada comissão vai avaliar o risco de determinadas músicas provocarem depressão e ansiedade, ou comportamentos antissociais”.
“Músicas de protesto, músicas que denunciam as mazelas da nossa sociedade, músicas de deboche, de questionamento dos costumes — de bom e de mau gosto, não importa, há de haver liberdade de criação — poderão tranquilamente entrar no rol das consideradas antissociais ou violentas. Isso mostra que esse caminho proposto nos coloca perigosamente diante de uma atividade de censura mesmo, ou no mínimo, um ensaio para etapas posteriores”, disse.
A qualidade da música depende sim de processos educativos, mas não esses caminhos que estão sendo propostos, que podem se desviar perigosamente do educativo para o normativo, e para uma ante-sala de uma nova censura
Nesse sentido, Leonardo Leão lembrou que no rock e no heavy metal, por exemplo, a contestação dos paradigmas e parâmetros da sociedade sempre foram comuns e estarão presentes: “O black metal sempre existirá criticando as religiões, o punk e o thash sempre contestarão as regras da sociedade, o rap sempre denunciará a violência policial e o descaso dos poderes públicos”.
Esse projeto de lei não se sustenta em base alguma. O que precisamos é de mais qualidade na educação
Impacto nos festivais de música
Outra preocupação que surgiu após o surgimento desse projeto de lei é a possibilidade dos festivais de música serem afetados. Com isso, BigBross, que é responsável pelo Big Bands, evento de bandas de punk, de metal e de metal extremo, acredita que se o projeto realmente for aplicado, todas as bandas que ele vá contratar vão ter de avisar que as letras contém questões estabelecidas nos critérios do PL.
“Os festivais vão ser afetados na parte da idade das pessoas que vão frequentar esses eventos. Já na formação das grades, eu acredito que muito desses eventos, a depender da polêmica, queiram manter esses artistas. A maioria dos festivais eu vejo assim”, finalizou.
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