JUSTIÇA
Audiências de custódia liberam quase 70% dos presos em Salvador
De 946 audiências de custódia realizadas em Salvador, em 659 a Justiça determinou liberdade provisória
Por Leilane Teixeira
“Há quase um mês nossa família não é mais a mesma. Há quase um mês sentimos o desgosto do que é viver uma injustiça. É muito contraditório pensar que alguém que trabalhava a serviço da segurança pública, no momento em que precisou da Justiça, não foi acolhido. Hoje, meu tio não está mais conosco. Um monstro o matou. Esse mesmo monstro foi solto e está vivendo uma vida normal. Não é justo”.
O forte depoimento é de Andreia Franco, sobrinha do subtenente da Polícia Militar Antônio Fernando Paim, que morreu após ser atropelado durante uma blitz, no bairro da Sussuarana, em Salvador, em julho deste ano. O suspeito, Bruno de Araújo, chegou a ser preso, mas teve a liberdade provisória concedida pela Justiça baiana após passar pela audiência de custódia.
Decisões judiciais como essa não são raras. Um levantamento do Portal A TARDE junto ao Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) aponta que, no primeiro semestre de 2024, foram registradas 1.313 prisões em flagrante na comarca de Salvador. Deste total, 367 foram consideradas ilegais e 946 seguiram para a audiência de custódia. Dentre os casos que chegaram à audiência de custódia, a Justiça baiana determinou a liberdade provisória para 659 presos, enquanto outros 287 tiveram a prisão em flagrante convertida para preventiva.
Os números apontam que quase 70% dos presos que passaram pela audiência de custódia estão soltos e respondem pelos crimes em liberdade.
“O Brasil é regido pelo princípio constitucional da presunção de inocência, e não da presunção de culpabilidade. Quando uma pessoa é presa em flagrante, o juiz avalia, de imediato, se a prisão foi legal. Caso seja identificada alguma violação dos requisitos da prisão em flagrante, já é determinado o relaxamento. Caso o juiz julgue legal, o próximo passo é encaminhar o flagranteado para a audiência de custódia. É o momento em que uma pessoa que foi presa é apresentada ao judiciário, com a participação do Ministério Público e da Defensoria ou de um advogado, que irá analisar a legalidade e a necessidade da prisão, para que se promova um espaço democrático de discussão”, explica o advogado criminalista Osmar Palma, em entrevista ao Portal A TARDE.
O advogado e professor de direito penal esclarece ainda que, na audiência de custódia, deverão ser analisadas fundamentalmente três questões:
- A legalidade da prisão, ou seja, se foram respeitados todos os procedimentos legais;
- A dignidade do preso e se houve excesso por parte da polícia;
- Analisar também a necessidade de manutenção da prisão decretada, convertendo a prisão em flagrante em prisão preventiva.
No ordenamento jurídico brasileiro, a regra é a liberdade, prisão é a exceção. Conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, podendo decretar medidas cautelares diversas da prisão, não se confunde com impunidade
A dor da “impunidade”
Enquanto os procedimentos legais são seguidos com base no ordenamento jurídico, do outro lado, a família do subtenente e de outras vítimas de crimes em Salvador anseiam por mudanças.
“Tudo o que nossa família está sentindo e vivendo, com certeza não vai ter palavra suficiente para expressar. Já são mais de 30 dias desde que meu tio foi brutalmente atropelado e quase um mês que ele se foi. Não podemos dizer que foi um acidente algo que foi feito de forma proposital. E por incrível que pareça, ele saiu de casa para trabalhar, para garantir a segurança da população, e foi vitimado por um infrator. Enquanto um criminoso está podendo desfrutar dos momentos em família, a nossa só sofre, só chora", lamenta Andreia.
"A nossa família está inconformada com tudo que estamos vivendo. Meu tio deixou uma mãe de 84 anos que já tinha problemas de saúde, já tinha uma saúde debilitada e que está piorando diariamente, porque não aceita a perda do filho da forma que foi. Além disso, a dor piora ainda mais por saber que ele [o suspeito] está solto, respondendo em liberdade”, desabafa.
A sobrinha do subtenente da Polícia Militar argumenta ainda que qualquer pessoa que busca a legislação para poder ter uma carteira de habilitação é ensinada que, no trânsito, ela dirige por ela e pelas demais pessoas. "Ele [o suspeito] tinha consciência do que estava fazendo, tinha consciência do que poderia gerar, e mesmo assim optou por atropelar, em agir dessa forma, mesmo sabendo que isso poderia trazer graves consequências”, ressaltou.
O subtenente Paim foi atropelado no dia 13 de julho deste ano. Ele participava de uma blitz da polícia, quando foi atingido por dois indivíduos que tentavam escapar da abordagem. No impacto, o subtenente teria batido com a cabeça e sofreu um traumatismo craniano. Ele passou alguns dias internado, mas não resistiu e foi à óbito no dia 24 de julho. O enterro aconteceu um dia depois, sob forte comoção.
“Já vai fazer quase um mês da morte do meu tio. Quase um mês, que a minha família está despedaçada, que a gente não consegue dormir uma noite em paz. Quase um mês que a gente só se pergunta: e a Justiça? O que é que a Justiça vai fazer? Infelizmente não podemos contar com ela para a garantia do direito do cidadão de bem. A audiência de custódia decretou que ele poderia responder em liberdade, e ele está seguindo, vivendo a vida dele normalmente, enquanto meu tio está sepultado. Foi enterrado, perdeu os sonhos, os objetivos e teve a carreira interrompida. Nós só queremos que ele seja punido pelo que ele fez", declarou.
A reportagem do Portal A Tarde conversou com Antonio Faiçal, juiz do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, que falou sobre o papel da audiência de custódia.
"O objetivo desse procedimento legal é apresentar a pessoa presa em flagrante a um juiz, para que ele possa, naquele momento, ouvindo a pessoa, perceber melhor tanto as características pessoais quanto processuais desse cidadão, e decidir se ele pode aguardar o processo em liberdade ou se ele precisa aguardar esse processo privado de liberdade", disse.
Faiçal também explica que não são apenas pessoas que cometeram crimes violentos que são levadas à audiência de custódia. Todo preso em flagrante, detido por qualquer tipo de crime, é encaminhado para o procedimento.
"Há uma quantidade enorme de crimes em que as pessoas são presas em flagrante e que não envolvem violência. Aliás, os crimes mais perniciosos para nossa sociedade, como homicídio, são raramente flagrados. É muito difícil pegar uma pessoa praticando um ato desses", relatou.
Com isso, também é analisado o histórico criminal do suspeito, o que, em alguns casos, leva à soltura do suspeito. "Dos crimes que são apresentados à justiça, não se revelam apenas crimes violentos e nem sempre são praticados por pessoas com histórico criminal, o que faz entender que o caminho natural seja a soltura", completou.
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